Análise: Mesmo sem golpe, a democracia brasileira refluiu

Levantar suspeitas de fraude nas eleições não é trivial e provoca piora na avaliação democrática geral

(Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo)
(Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo)

Em seu último ano de governo, podemos apontar uma ação constante de Jair Bolsonaro como presidente do país: a construção de polêmicas. Alimentando a sua rede de apoiadores, as diferentes controvérsias se sucedem mantendo o acirramento popular semelhante ao que é normalmente visto em períodos eleitorais. E é exatamente em torno deste tema que declarações do presidente e de seus apoiadores se voltaram na última semana, ao questionar o processo eleitoral no Brasil mais uma vez.

Desde que foi eleito, o presidente acusa as eleições de serem fraudadas, sem apresentar uma única evidência sequer. Repetindo a ladainha à exaustão, o mandatário insufla seus apoiadores não apenas a questionar a eleição, mas a apoiar o governo em medidas que lhe tragam algum controle sobre etapas do processo eleitoral. Na última semana, a novidade foram proposições de apuração paralela tanto pelos militares quanto pelo seu partido, o PL. Tratada como mais uma bobagem proferida dentre as inúmeras fake news que promove, este tema não deveria passar despercebido ou ser menosprezado.

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As eleições constituem-se uma das etapas primordiais de uma democracia. Embora a ciência política aponte uma variedade considerável de aspectos que fundamentam um regime democrático, a escolha popular de suas lideranças políticas é uma das que são menos controversas entre os cientistas políticos. Afinal, a democracia depende essencialmente de que as lideranças políticas sejam escolhidas pelo povo.

Neste sentido, as eleições precisam ser repetidas regularmente e permitir a competição justa pelos postos representativos. Isso significa que a oposição ao governo precisa ter condições de vencer a eleição, o que, por sua vez, implica em que a apuração reflita o desejo popular, e os atuais ocupantes do governo deixem seus cargos no caso de derrota. Os questionamentos apresentados pelo atual presidente se concentram exatamente em torno destes aspectos. Ao dizer que as eleições são fraudadas, levanta dúvidas sobre a real vontade popular, ao mesmo tempo em que dá indícios de que não sairá do cargo em caso de derrota, pois entende que o resultado seja ilegítimo por definição.

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O exemplo da derrota de Donald Trump nos EUA em 2020 não nos deve fugir à mente. Antigo aliado de Bolsonaro e exemplo inspirador de suas ações, questionou o resultado de sua derrota para Joe Biden ainda ao longo da apuração. Suas declarações suscitaram inclusive a invasão do Capitólio. De acordo com a imprensa americana, o então presidente cogitou solicitar às Forças Armadas a remoção de urnas em locais que votaram em favor dos democratas. Porém, por lá, não se ouviu de parte dos militares nenhuma manifestação pública que endossasse apoio a esta agressão à democracia norte-americana.

Por aqui, o enredo segue o mesmo caminho, mas com diferenças bastante preocupantes. Se por lá a aptidão histórica dos militares à intervenção política parece bastante reduzida, o mesmo não ocorre no Brasil. Inclusive conclamadas por parcela da população à “pôr as coisas no lugar”, as forças militares nacionais possuem longo histórico de atuação política. Em um contexto em que os militares fazem parte do governo e, assim, confundem-se com a atual administração, é natural temer alguma ação organizada diante da desconfiança sobre o resultado eleitoral.

Ainda que o apoio à intervenção militar seja limitado a uma parcela relativamente pequena da população, a insistência no tema e os recentes gestos de interferência sobre o TSE mostram que o receio da não aceitação de uma eventual derrota na eleição não é infundado. Inclusive, as últimas ações chegaram a causar dúvidas no principal oponente à reeleição de Bolsonaro. O PT questionou militares com quem possuem boa relação a respeito do apoio da caserna às tentativas do presidente em melar a eleição. Este ambiente de dúvida não poderia ser mais temerário para o regime democrático no país.

Se a democracia pode ser medida, não é preciso esperar que um golpe de Estado ocorra, seja militar ou civil, para que se compreenda que a democracia refluiu no país em um ambiente como este. Para ilustrar, o gráfico abaixo mostra a evolução histórica de um Índice de Democracia Eleitoral. Nele, podemos ver que a redução do índice de democracia no país ocorre desde 2014, justamente quando houve o questionamento do PSDB, liderado por Aécio Neves, a respeito do resultado da eleição presidencial daquele ano.

Índice de Democracia Eleitoral – Brasil

Fonte: V-Dem

A retração neste indicador nos mostra que afrontas ao processo eleitoral, impeachment de presidentes etc. são aspectos muito negativos. Levantar suspeitas de fraude nas eleições não é trivial e provoca piora na avaliação democrática geral. Ainda mais quando não são trazidas evidências para sustentar a acusação.

No caso em que houvesse realmente fraude em alguma etapa da eleição, é de se perguntar por que os derrotados em razão dela não são capazes de apresentar as evidências que os mobilizam. Por que os prejudicados se calariam? Ademais, para que houvesse fraude de fato, o número de envolvidos no esquema seria enorme e é de se imaginar que alguém acabaria denunciando os comparsas.

Diante da insistência do presidente em suas afirmações, o denunciante certamente alcançaria o posto de líder da trupe bolsonarista no mesmo dia – aliás, no ritmo em que as fake news se propagam entre eles, não seria impossível que alguém apresentasse “provas” apenas para conquistar este posto.

Seja como for, por que não há um único indício que possa ser investigado? Se é um caso de justiça, por que não apresentar uma denúncia que dê início a um processo de investigação? Não parece ser essa a intenção dos reclamantes. Sem um processo judicial que as avaliem, as reclamações permanecem sendo utilizadas como armas em um contexto de disputa de versões e interpretações que deturpam o ambiente político. As agressões à democracia se tornam constantes.

No imaginário popular, parece que as pessoas esperam que os militares tomem o lugar de Bolsonaro ou coloquem os tanques na rua, por assim dizer. Mas as democracias não têm mais morrido desta forma. Se temos liberdade de expressão e valorizamos esta possibilidade, precisamos urgentemente condenar aqueles cujas ações podem nos tirar essa liberdade pelo mau uso ao questionar a essência dessa liberdade. Mesmo que seja o próprio presidente.

(Por Glauco Peres, colunista do JOTA)
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