Entenda por que texto da PEC da Transição desagrada mercado

Proposta do governo eleito prevê a possibilidade de despesas de quase R$ 200 bilhões acima do teto de gastos

Ao encaminhar uma minuta da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de Transição com a possibilidade de despesas de quase R$ 200 bilhões acima do teto de gastos, a equipe de transição do governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aumenta a aposta, “minimizando/ignorando os sinais de preocupação que o mercado tem enviado em relação à sustentabilidade fiscal no médio prazo”, diz Alberto Ramos, diretor de pesquisa econômica para a América Latina do Goldman Sachs.

Com R$ 200 bilhões de gastos acima do teto – aproximadamente 2% do Produto Interno Bruto (PIB) estimado para 2023 -, o déficit fiscal primário em 2023 pode se aproximar de 2% do PIB, aponta Ramos. “Além disso, uma vez isento do teto, o programa poderia, e provavelmente irá, crescer ainda mais nos próximos anos”, afirma.

O que está incomodando o mercado, segundo ele, é a combinação de um nível muito alto de gastos que não estarão sujeitos ao teto com o fato de que isso está ocorrendo sem uma equipe econômica designada para analisar o impacto dessas medidas e fornecer orientações e linhas de base para a política fiscal.

“Além disso, também não há nenhuma menção sobre como pagar pelo programa permanente maior do Bolsa Família (receita permanente adicional, cortes de gastos) ou qualquer discussão sobre o que deve substituir o teto de gastos como âncora fiscal”, afirma.

O projeto será debatido no Congresso, começando pelo Senado, e pode ser diluído, observa Ramos. “Por exemplo, em vez de uma isenção permanente do Bolsa Família, o Congresso pode conceder uma exceção por quatro anos (o mandato presidencial completo) ou possivelmente por apenas um ano.”

‘Choque inflacionário’

Colocar despesas com investimentos de eventual excedente de receitas para fora do teto de gastos é uma “maluquice”, e um “total nonsense” quando se projeta déficit primário em 2023 e se espera aumento do endividamento, diz Gabriel Leal de Barros, sócio e economista-chefe da Ryo Asset.

A expansão fiscal pretendida levará, diz ele, a um choque inflacionário na economia brasileira.

Destinar parte do excedente de receitas para investimentos e colocar essas despesas fora do teto de gastos é uma das sugestões defendidas pela equipe de transição do governo do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva. Uma minuta para a elaboração de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) foi entregue ontem pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, e coordenador da equipe de transição, Geraldo Alckmin.

O excedente de receitas tem sido utilizado para abatimento da dívida da União. Pela proposta defendida pela equipe de transição, a parte a ser colocada fora do teto e que seria destinada a investimentos seria limitada a um percentual da receita corrente líquida, o que levaria a uma despesa adicional acima do teto de cerca de R$ 23 bilhões em 2023. Isso, somados aos R$ 175 bilhões relacionados ao deslocamento de todos o programa Auxílio Brasil – que deve voltar a ser chamado de Bolsa Família – para fora do teto, levaria a um excedente de R$ 198 bilhões acima do teto.

“Vamos colocar na Constituição a possibilidade de ter excesso de arrecadação num ano em que teremos déficit primário. Não faz o menor sentido, é um total nonsense”, diz Barros. E o excesso de arrecadação, lembra, será medido em função da receita projetada. “Ou seja, se viver uma receita menos pior, se configura o excesso de arrecadação e o gasto com investimento. Teremos expansão fiscal mesmo com déficit primário e a dívida crescendo. Não faz o menor sentido econômico.”

Para Barros, tirar o Bolsa Família integralmente do teto também é outro erro. O economista defende que o gasto acima do teto se limite a R$ 100 bilhões e seja estabelecido somente para 2023. Nesse valor entraria, entre outros, o aumento de R$ 400 para R$ 600 mensais do programa social, o adicional de R$ 150 por criança de até seis anos prometido em campanha por Lula, impacto de aumento de salário mínimo, elevação do piso da enfermagem e recomposição de programas sociais. Para os anos seguintes, o orçamento a partir de 2024 seria ajustado por novo arcabouço fiscal a ser discutido e revisão de gastos e receitas orçamentárias a ser realizado no decorrer de 2023.

PEC pode ser desidrata

Ainda que haja disposição do Congresso para aprovar aumento de gastos, cálculos políticos de partidos de centro e independentes, e não um “conservadorismo fiscal”, podem desidratar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, pensada pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para excepcionalizar quase R$ 200 bilhões do teto de gastos, na avaliação de Roberto Secemski, economista-chefe para Brasil do Barclays.

“Esperamos alguma diluição no volume da flexibilização fiscal que poderia ser aprovada pelo Congresso, pois será necessário um amplo consenso para garantir a aprovação da PEC de Transição antes do fim do ano”, escreve Secemski em relatório.

“No entanto, ainda não está claro que tipo de diluição seria possível, pois isso dependerá do texto eventualmente usado na proposta a ser apresentada ao Senado (por exemplo, se apenas lista a exclusão do Auxílio Brasil do teto de gasto ou se um valor nominal específico será incluído)”, pondera.

Os valores em discussão – entre 1% e 2% do PIB – parecem “excessivos” devido ao seu impacto adverso sobre o resultado primário e a trajetória da dívida, principalmente porque a maioria dos novos gastos provavelmente seria de natureza permanente, como aumentos de benefícios e do salário mínimo, diz Secemski. “Não é realmente uma ‘renúncia’ como os locais chamam, mas sim uma ‘mudança de nível’ nos gastos”, afirma.

Mesmo que o tamanho da flexibilização fiscal no curto prazo fique em R$ 175 bilhões, a retirada do Auxílio Brasil/Bolsa Família do teto também pode resultar em aumentos recorrentes de benefícios no futuro, por exemplo, permitindo que sejam indexados à inflação anual e/ou pela ampliação do público-alvo, aponta Secemski.

Além disso, a exclusão do Auxílio Brasil/Bolsa Família não apenas em 2023 daria mais tempo para o novo governo se organizar e apresentar uma nova âncora fiscal, “no entanto, se a exclusão for concedida por quatro anos ou mais, os incentivos para redesenhar a estrutura fiscal no próximo ano poderão diminuir”, diz Secemski.

Secemski diz não entender a nova composição do Legislativo – mais de centro-direita – como “fiscalmente conservadora”, ainda que muitos deputados se inclinem para a direita em algumas questões comportamentais. “Embora a barreira para revogar a legislação anterior (por exemplo, reforma trabalhista, autonomia do Banco Central, privatização da Eletrobras) seja alta, o mesmo não pode ser dito sobre iniciativas para aumentar os gastos”, afirma.

Apesar disso, recentemente, alguns membros do chamado “centrão” demonstraram resistência em dar ao novo governo um “cheque em branco”, lembra Secemski. Embora o economista diga esperar que haja apoio suficiente no Congresso para aumentar os gastos e burlar o teto mais uma vez, é possível que alguma diluição possa ocorrer na proposta de retirar todo o Auxílio Brasil/Bolsa Família do teto a um custo de R$ 175 bilhões, mais até R$ 23 bilhões em investimentos.

“A nosso ver, não faria sentido político que os partidos de centro e independentes abrissem mão completamente da importante influência que teriam sobre o governo Lula nos próximos anos, mesmo antes da posse do presidente eleito. Ou seja, o motivo da diluição não seria o ‘conservadorismo fiscal’ em si, mas cálculos políticos para extrair mais concessões do governo no futuro”, afirma.

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