O plano de Rial para tirar a Americanas do atoleiro
Ex-CEO negocia com bancos e fornecedores em nome da 3G
A repercussão do anúncio de inconsistências contábeis e da renúncia do presidente e do diretor financeiro da Americanas foi tão ruim quanto se esperava. A ação chegou a derreter 80% em bolsa, um desempenho com poucos precedentes no Novo Mercado da B3 para companhia desse porte, e fechou o pregão desta quinta-feira com queda de 77%. Numa reunião antes da abertura do pregão, Sérgio Rial, o CEO que renunciou, até tentou amortecer o impacto. Se o esforço nesse sentido foi vão, a conversa serviu para entender quais os caminhos Rial pretende percorrer para ajudar a tirar a companhia desse atoleiro.
O executivo deixou o cargo que comandaria a estratégia operacional da empresa, mas claramente foi nomeado pelos acionistas de referência, a 3G Capital, o negociador e condutor desse processo. Oficialmente, Rial é identificado como o assessor do trio para o assunto.
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O plano que o executivo levou ao conselho, conforme sinalizou e conforme entenderam gestores e analistas, consiste em negociar prazo com bancos credores, para que não antecipem vencimentos e não fechem a torneira de financiamento para as operações com fornecedores; rever estratégias de investimento e até inventário de lojas para aliviar fluxo de caixa; chamar uma capitalização de acionistas nos próximos meses, o que pode se dar por aumento de capital privado ou oferta subsequente de ações (“follow-on”); e finalmente tentar uma fusão ou venda da Americanas, que pode ser concomitante à capitalização, para colocar a empresa de pé de vez e tirar o problema do colo da 3G.
Em paralelo, o comitê independente e as auditorias vão correr para deixar o balanço consolidado de 2022 “limpo” — ainda que precise estender o prazo de apresentação para pouco além de março.
Ainda que os números continuem preliminares, Rial já deixou claro que a injeção terá que ser de montante relevante — “não é coisa de milhões”, disse o executivo.
O 3G, que tem hoje 31% da companhia, não será a solução, mas parte dela, disse Rial, deixando claro que os acionistas Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles vão colocar as mãos no bolso, mas não pretendem bancar a conta sozinhos.
O porta-voz da casa no tema argumentou em favor do trio. “As vozes mais negativas dirão: ah, já não foi bom na ALL, ou ‘não teve um problema na Heinz ?’ Mas esse grupo nunca deixou de reportar problemas quando encontram, são capitalistas puro sangue, aos quais tenho muito orgulho de ter me associado”, disse Rial.
Segundo fontes de mercado, a saída mais provável é uma oferta subsequente, uma vez que haveria maior dificuldade em convencer somente os atuais acionistas (que viram ontem suas posições valeram menos de 30% do que eram 24 horas antes) a injetar capital. Num “follow-on”, outros investidores poderiam entrar uma vez que o preço do papel ficou baixo.
Em setembro, o patrimônio líquido era de R$ 14,7 bilhões, e o valor será afetado por alguma parcela dos R$ 20 bilhões em inconsistências ou até essa magnitude. A companhia ainda não deixou claro o tamanho dessa conta e os analistas têm dificuldade em cravar o valor total do rombo.
O aporte de capital terá como foco solucionar o endividamento da companhia e o patrimônio líquido que, após os ajustes de balanço, deve ficar negativo.
Na transação de “risco sacado”, a varejista financia num banco o pagamento da compra feito junto ao fornecedor. O banco antecipa ao fabricante com deságio, e a varejista paga o banco, meses depois, com juros. No caso da Americanas, a suspeita do mercado, dizem fontes, é que esse prazo passou de 180 dias, chegando a 365 dias — e a média de mercado são 90 dias. E quanto maior o prazo, maior os juros. “Deixou de ser uma operação genuinamente mercantil”, resumiu um diretor de varejista.
A contabilização incorreta foi registrar essa operação de “risco sacado” na conta de fornecedores, em vez de contabilizar como dívida. E considerar juros pagos aos bancos como uma conta redutora de fornecedores.
“A empresa precisa reconhecer que o nível da dívida não é o que foi reportado, e o volume a ser definido na auditoria precisa ser adicionado à dívida total. O P&L relativo a um certo número de anos precisa ser revisto”, disse Rial, garantindo que são mais de três anos em retrospecto.
Na conversa desta quinta-feira com o mercado, Rial mencionou ao menos duas vezes a necessidade de consolidação no varejo e, em uma das vezes, citou o aumento de capital, que “pode vir com um movimento estratégico”. Foi o gatilho para as especulações de quem seria um comprador ou um potencial sócio para a empresa. “Hoje? Ninguém. Depois que arrumar a casa, veremos a que preço”, opina um gestor de fundos.
Mesmo assim, esse é um segmento de gestão complexa, de poucos competidores, e que exigiria um desenho muito atraente para conseguir mobilizar eventuais interessados.
A Americanas também já abriu negociações com os bancos, que estariam disposto a rolar a dívida da companhia e não estrangular o ritmo de compras.
O Valor apurou que há negociações em aberto junto a três instituições financeiras que concentram a maior parte das transações de risco sacado (cerca de R$ 13 bilhões) sobre a manutenção dessas linhas — BTG Pactual, Bradesco e Itaú.
Rial também acenou aos bancos, dizendo que tem pedido para que “segurem firme”, usando inclusive sua credibilidade pessoal para isso. “Acredito que conte, humildemente, com a minha credibilidade e reestruturações que já fiz antes. Paguei a todos na Marfrig”, comentou, sobre o período em que ajudou a empresa de carnes de Marcos Molina a arrumar as contas.
Ainda que tenha comentado que a companhia não tem dívida relevante de curto prazo — os vencimentos são a partir de 2025 — e a maior parte da dívida da empresa não esteja sujeita a “covenants”, ele afirmou que a empresa vai negociar um “standstill” com os bancos e manter o fluxo de financiamento dos fornecedores.
Uma agenda fundamental nesse processo que Rial cita, com bancos e a indústria, é manter a operação oxigenada — ou seja, a companhia precisa continuar tendo produto para vender e continuar efetivamente aumentando vendas.
É esse fluxo ativo que mantém o ritmo de entrada de estoques de mercadorias, alimentando a empresa continuamente. A Americanas tinha, em setembro, 107 dias de produtos em estoque, um aumento de 11 dias frente ao segundo trimestre, mas esse volume cai logo após o Natal e já deve estar menor. Em períodos de baixa sazonalidade variam de 80 a 90 dias. Em linhas de produtos que o varejo chama de “curva A”, de alto giro, como televisores e celulares de menor preço, a média de estoque no varejo varia de 40 a 50 dias, apurou o Valor.
Há algumas opções para manter ativos os contratos de compra junto à indústria. “Além do ‘risco sacado’, a empresa pode, obviamente, usar o próprio caixa, mas não seria um caminho para eles. E há a linha de crédito junto aos fornecedores. Mas essa exige a garantia de seguradoras de crédito internacionais, que devem ter piorado para a Americanas”, diz um diretor do setor. “Multinacionais como LG, Samsung Motorola, não vendem sem estarem com seguro de 100%, que garante 100% do recebível. Alguns aceitam fazer 70%, 80% quando o cliente é muito bom. Mas hoje, para a Americanas, acho difícil baixarem a exigência para menos de 100% de cobertura”, afirma a fonte.
Em termos de valor disponível em caixa e equivalentes, incluindo recebíveis, a Americanas tinha cerca de R$ 8,6 bilhões em setembro. Sem incluir recebíveis, são R$ 4,3 bilhões.
Por Maria Luíza Filgueiras, Adriana Mattos e Fernanda Guimarães