Quando o parceiro milionário é também um problema

Os clubes precisam ter uma visão de longo prazo, e aprender a lidar com o mercado financeiro

Analisar qualquer negócio demanda mais do que olhar os números frios de uma demonstração financeira. Na literatura, analisar os números do ano é como observar uma foto, que leva em consideração a soma de diversos movimentos que ocorreram ao longo do ano, mas que somados transforaram a paisagem naquilo que estamos admirando, ou está nos causando dor, em alguns casos. E hoje vou tratar sobre parcerias milionárias no futebol.

Uma análise completa requer conhecer o passado, entender o presente e visualizar o futuro, o que transforma aquela foto que as demonstrações financeiras apresentam num filme, onde a história se desenrola de maneira fluida, por vezes bela, e outras tantas com jeito de Terror B.

Futebol como qualquer indústria

Nesse processo, analisando o comportamento e a estrutura da indústria do futebol, é possível identificar características marcantes, por vezes únicas, mas outras bastantes comuns a qualquer indústria.

Por exemplo, temos um negócio em que as receitas recorrentes deveriam trabalhar para garantir o break-even da operação, e negociação de atletas – venda de ativos – seria a responsável pelos lucros.

O futebol, na essência, não é uma atividade para ter lucro na operação, ou o clube está deixando a competitividade na mesa.

Problema com fluxo de caixa

Agora, uma característica que se repete em outras indústrias é a de problemas de fluxo de caixa. E isso tem a ver com as parcerias milionárias no futebol.

Mesmo as receitas recorrentes estão cada vez mais variáveis, e concentradas em períodos específicos, mas especificamente no final do ano.

Logo, para manter uma atividade operando com as contas em dia, considerando que os custos são estáveis e as receitas instáveis, é necessário trabalhar com dinheiro de terceiros, ou seja, com empréstimos.

A grande maioria das indústrias faz isso. Um exemplo clássico é o setor de panetone, que vende de maneira concentrada entre outubro e dezembro, mas precisa começar a produzir muito antes, e recebe dos clientes apenas em janeiro ou fevereiro.

Ou seja, gasta primeiro, toma empréstimos para cobrir o deficit de caixa, e recebe depois, pagando e transformando o lucro em caixa. Inclusive, os panetones estão chegando cada vez mais cedo às gôndolas, de forma a antecipar também o fluxo de recebimento das vendas.

Geralmente os empréstimos são feitos através da antecipação de recebíveis.

Empresa A vendeu para supermercado B, que pagará apenas em janeiro, após o Natal.

Então, a Empresa A vai ao mercado, oferece o recebível do Supermercado B e antecipa o recebimento do valor. Mas isso ocorre dentro do fluxo operacional, com começo, meio e fim., que se repetem ano após ano.

Má gestão no futebol?

No futebol resolvemos demonizar as antecipações de contratos.

Sem entender como a roda gira, resolvemos dizer que clubes que antecipam dinheiro da TV estão fazendo má gestão.

Nem tanto, nem tão pouco. A questão não é a antecipação para cobrir eventuais furos de caixa estruturais do negócio, mas antecipar para realizar gastos que aumentarão os furos.

Contratações, pagamento de dívidas estruturais, tudo isso acaba deixando um rastro desastroso e transforma-se num círculo vicioso: as antecipações deixam buracos no futuro, que são cobertos por novas antecipações e assim sucessivamente.

Agora, acostumamos a ouvir falar em antecipação de direitos de transmissão, e não é por acaso.

Quem antecipa tem como garantia o título de um pagador que é considerado bom – a Globo, geralmente – e por isso empresta ao clube. Só por isso. Sem essa garantia o empréstimo não acontece.

Mas os clubes estão ampliando receitas, fechando novas parcerias comerciais, assinando contratos com outras empresas de transmissão de jogos. Valores relevantes, diga-se. Mas quem é a contraparte? Ela é vista como bom risco de crédito, capaz de servir de garantia para um empréstimo? Serve para se tornar lastro para uma antecipação?

Parcerias milionárias no futebol

Pois é exatamente este o momento em que vivemos. As novas parcerias comerciais estão atreladas a parceiros cujo risco de crédito não é reconhecidamente bom.

E os clubes seguem batendo à porta de parceiros financeiros acostumados a antecipar recebíveis da Globo, mas que não entendem uma vírgula de como funciona o futebol, deixando de entender os riscos e fechando a torneira para novas formas de empréstimos. Afinal, qual é o problema das parcerias milionárias no futebol?

O risco das parcerias milionárias

Dando nome aos bois: não adianta contratos enormes com casas de apostas que não tem balanços ou registros, nem contratos de cessão de direitos com empresas sem histórico de existência e possibilidade de ter seu risco de crédito avaliado. É simples assim.

Os clubes ampliam seus parceiros comerciais sem entender que os parceiros financeiros demandam garantias robustas e qualificadas para manter o fluxo de empréstimos.

Logo, o ambiente do futebol tende a ficar mais nervoso em termos financeiros.

Quando um clube assina contrato com uma empresa desconhecida, de um setor desconhecido, sem demonstrações financeiras robustas e que sirvam de suporte para uma antecipação, estão perdendo parte importante do seu oxigênio. Literalmente, deixando dinheiro na mesa.

Visão de longo prazo…

Quando iniciei a estruturação de financiamento ao setor Agro, me deparei com credores desestruturados, sem demonstrações financeiras, com pouca visibilidade de suas capacidades de pagamento.

Foi um trabalho árduo que todo o mercado financeiro fez para trazer transparência, qualidade nos controles, profissionalização na indústria, e hoje os produtores rurais são financiados por inúmeros players do mercado.

Quando o mercado financeiro entra, entende o negócio, e os credores assimilam a necessidade de mudança e que o caminho é ter uma visão de longo prazo, o dinheiro vem.

… mas o futebol pensa no curto prazo

Na contra-mão disso, o futebol segue optando por olhar apenas para o próximo mês, com suas parcerias milionárias. Não adianta o patrocínio crescer se nem todas as contrapartes não estão aptas a servirem de lastro para antecipações. Nem aumentar bilheteria se a estrutura de cobrança e registro é falha. Não adianta vender direitos de transmissão que não possam ser antecipados.

E, veja, não é apenas uma questão de antecipações. Isso deveria servir de alerta para que os clubes avaliassem de maneira mais profunda quem são seus parceiros e estruturas operacionais, pois traz acoplado um risco de recebimento.

Ninguém é obrigado a nada, mas uma boa gestão de riscos deveria alertar para aspectos que atrapalham a continuidade da operação.

Um dia, talvez, os clubes passem a operar de maneira equilibrada o ano todo.

O futebol precisa de visão de longo prazo, e aprender a lidar com o mercado financeiro.

Em nenhum lugar do mundo é atividade de baixo risco, mas em muitos é possível operar e ser financiado de maneira mais eficiente e segura.