Fair play financeiro: do Dia da Marmota às preces para Santa Edwiges

Há uma expressão que costumo usar quando algum tema fica recorrente, mas nunca é solucionado: é o ‘Dia da Marmota’. Para quem viu o filme ‘Feitiço do Tempo’, um clássico das sessões de filmes da TV paga, o personagem principal ficou preso numa armadilha do tempo, em que acordava sempre no mesmo dia, para cobrir jornalisticamente o chamado Dia da Marmota. Ou seja, o assunto nunca ia embora.
Falando em assunto que não vai embora, toda semana trazem à cena o fair play financeiro.
Basta alguém atrasar pagamentos, contratar um atleta, anunciar que a dívida aumentou, ganhar uma partida atrasando pagamentos, ser eliminado atrasando pagamentos, cair com outros times lhe devendo, e por aí vai, numa quantidade enorme de possibilidades que evocam o fair play financeiro. Tal qual oram por Santa Edwiges.
Muito debate em torno do fair play financeiro
Sempre tem muito debate sobre o que é o fair play financeiro e para que serve, como se controla… Então, vamos novamente organizar a conversa.
O objetivo do fair play financeiro é controlar as finanças dos clubes, para que as agremiações se mantenham equilibradas, saudáveis e capazes de pagar suas contas. Ou seja, o objetivo é evitar atrasos e dividas impagáveis que afetam todo o ecossistema do futebol.
Como se faz isso?
Na Europa, onde o assunto é tratado há mais de uma década, existem diversas formas, mas as mais comuns são
- Controlar os custos salariais como uma proporção das receitas. Ou seja, pode-se gastar 70%, 80% das receitas, ou um percentual qualquer pré-definido.
- Pode-se controlar o prejuízo, com um limite máximo acumulado em 3 temporadas, por exemplo, de € 30 milhões, e que pode chegar a € 120 milhões se os acionistas aportarem a diferença em capital.
São as formas mais comuns.
Recentemente, a federação inglesa incluiu um controle para a terceira e quarta divisões em relação aos aportes de acionistas que eu gosto muito: de todo valor aportado, apenas 50% podem ser direcionados ao pagamento de salários e contratações. O restante deve ir para investimentos em infraestrutura e pagamento de dívidas.
Em geral ninguém controla as dívidas, e acho um erro. O que gera atrasos não é somente gastar mais que 70% das receitas em salários, mas ter obrigações financeiras com dividas insustentáveis e outros gastos operacionais. Portanto, imaginar que basta controlar salários que estará tudo bem é uma meia-verdade.
O fenômeno dos clubes-estados
Mas e o desequilíbrio causado por clubes-estados e donos bilionários?

Pois é, temos que ir com calma com este tema. Se é razoável que haja algum controle para não desequilibrar o esporte, também é verdade que o dono que paga as contas em dia e não deixa dívidas pode aportar recursos para melhorar a qualidade do seu ativo.
Quando alguém compra uma fábrica de molho de tomates pode injetar dinheiro para melhorar as máquinas, a distribuição. Logo, um dono pode querer aportar capital para melhorar seu clube de futebol.
Só que entra aqui um cuidado necessário: aportar capital é diferente de injetar dinheiro a fundo perdido como contrato comercial. E isso deve ser controlado.
De qualquer forma, a iniciativa da federação inglesa é inteligente e trabalha no caminho certo. Quer investir? Ótimo. Mas só parte vai para o operacional, porque o resto deve ir para melhorar a estrutura.
E como fazemos para controlar isso no Brasil?
Pois é, estamos no Brasil, e a realidade do nosso futebol é diferente do europeu, seja porque lá a maioria dos clubes já é empresa, seja porque sistemas de controles externos já existem há anos e ajudaram a resolver parte dos problemas.
Temos, portanto, que tropicalizar o sistema se quisermos atingir resultados. E considerando que temos um futebol com clubes muito endividados e que não cuidam da operação – gastam muito o tempo inteiro, como se a temporada atual fosse a última a ser disputada na face da Terra – e outros equilibrados e comportados em termos de gastos, precisamos levar todos para o mesmo perfil de equilíbrio financeiro: dívidas compatíveis e gastos controlados.
A forma que entendo mais eficiente é combinar duas dimensões: performance e endividamento, com uma pitada de controle de entrada de capital.
Fair play financeiro: como controlar as coisas por aqui
Mas como? Pois bem, dá para fazer uma matriz combinando performance e dívida, de forma que clubes menos endividados podem gastar mais em relação às suas receitas, pois não precisam pagar tantas dívidas, e clubes mais endividados precisam controlar os gastos.
E não falo apenas de salários, mas de todos os gastos da estrutura. Não é apenas salário que afeta os clubes, mas gastos operacionais na atividade de clube social, os esportes olímpicos, o custo de logística – futebol é um negócio caro – e uma conta chamada ‘Serviços de Terceiros’, que é uma caixa-preta da estrutura financeira dos clubes.
Outro aspecto importante é declarar que se está com todas as contas em dia, com assinatura de dirigentes, contadores e auditores, para garantirmos a veracidade da informação.
Se fizermos isso, e limitarmos o aporte de receitas via contratos de publicidade com partes relacionadas, além de colocar uma trava no quanto os aportes de capital devem ser usados para salários e contratações, em algum tempo teremos um negócio mais sustentável e com menos queixas de falta de pagamento.
Quanto tempo?
Três ou quatro anos é o suficiente para iniciarmos as sanções para quem não cumprir o combinado, mesmo que ainda esteja fora da zona de equilíbrio. E quais as sanções? Ah, tem que ter transfer ban para quem descumprir, tem que ter perda de pontos para quem declarar informações inverídicas.
Daí me perguntam sempre: você acha que teremos fair play financeiro no Brasil?
A resposta é sim. Mas minha dúvida é se ao debater a realidade apresentada acima com os dirigentes eles seguirão defendendo que o sistema de controles é necessário. Haverá limitações, sanções, necessidade de maior capacidade de gestão.
Talvez seja mais cômodo seguir pedindo ajuda a Santa Edwiges.
Leia a seguir