- Home
- Mercado financeiro
- Economia
- O ‘plot twist’ no planejamento sucessório quase sempre acaba mal
O ‘plot twist’ no planejamento sucessório quase sempre acaba mal
O planejamento sucessório é essencial para evitar conflitos familiares e garantir uma transição tranquila. Indicar um tutor para filhos menores, elaborar um testamento, utilizar cláusulas restritivas e considerar a criação de um trust são algumas das estratégias recomendadas. A falta de planejamento pode levar a litígios prolongados e desentendimentos entre herdeiros. Um planejamento patrimonial bem estruturado traz segurança e harmonia familiar em momentos de vulnerabilidade.
Aqueles que gostam de cinema certamente já ouviram falar em “plot twist”. O termo descreve uma mudança radical na direção do enredo, surpreendendo e impactando o espectador.
Uma das técnicas de “plot twist” mais utilizadas é a peripeteia. Isto é, uma mudança repentina na história, que resulta em uma reversão das circunstâncias. Assim, um aparente conto de fadas vira uma completa tragédia.
Ainda que este artifício tenha por objetivo surpreender o público, a mudança de circunstâncias normalmente não é retratada como um evento aleatório.
Pelo contrário, a tragédia aparece como resultado de ações ou erros anteriores de um personagem. Então, o público é levado a um momento de reflexão: “o final trágico poderia ter sido evitado?”.
Plot twist: o final trágico pode ser evitado?
A título de exemplo, vamos imaginar a história de um casal, Cláudio, de 49 anos, e Renata, de 47 anos. Esse casal possui domicílio fixo no Brasil. Além disso, têm 3 filhos:
(i) João, de 14 anos;
(ii) Letícia, de 21 anos;
(iii) Fernanda, de 27 anos.
A dinâmica familiar funcionava bem, até que, repentinamente, Cláudio e Renata faleceram em um acidente de trânsito.
Os filhos, em luto e fragilizados pelo ocorrido, precisaram encarar o processo de sucessão, e, de imediato, se depararam com algumas surpresas e dificuldades:
– Primeiro, foi nomeado pelo juiz, como tutor de João, o avô paterno, com quem a família não mantinha boas relações;
– Segundo, durante o processo de inventário, Fernanda descobriu que a casa de campo da família fora doada, em vida, para Letícia. A descoberta a deixou descontente;
– Terceiro, Fernanda é casada em comunhão universal de bens. No entanto, Letícia, alegou que o cônjuge de Fernanda não possuía um bom relacionamento com a família. Logo, queria impedir seu acesso aos bens a serem inventariados;
– Quarto, os herdeiros descobriram a existência de uma companhia no exterior. A empresa era utilizada para concentrar investimentos financeiros. Porém, a companhia não teve sua sucessão endereçada pelos pais. Ou seja, se tornou necessário o início de um processo de inventário na jurisdição de sede da companhia, bem como a contratação de advogados locais.
Essas dificuldades degradaram a harmonia familiar, levando a um litígio que durou por anos.
Nessa história, a resposta à pergunta “o final trágico poderia ter sido evitado?” é sim. Isso porque existe uma série de mecanismos de planejamento sucessório que poderiam ter sido utilizados pelo casal para garantir uma sucessão tranquila e eficiente.
A seguir, explicarei alguns desses mecanismos.
Indicação de tutor para os filhos menores
É possível que os pais indiquem uma ou mais pessoas de confiança para cuidar dos filhos menores caso faleçam. Isso envolve desde cuidados pessoais até a administração do patrimônio, sobretudo aquele recebido pelos filhos a título de herança.
Essa indicação, apesar de não ser vinculante, será levada em consideração pelo juiz. Não havendo indicação, os menores ficarão sob os cuidados dos parentes consanguíneos mais próximos. Por exemplo, os ascendentes (avós e bisavós) e colaterais (irmão e tios), na ordem estabelecida pelo Código Civil.
Sendo assim, os pais poderiam ter indicado uma pessoa para ser tutora de seu filho menor em caso de falecimento. Com isso, evitariam que a tutela recaísse sobre um parente com quem não tinham uma relação de confiança.
Elaboração de testamento
O testamento consiste na disposição de última vontade do testador. Por meio dele, o testador pode indicar o que gostaria que acontecesse após a sua morte, dentro dos limites legais.
É uma das ferramentas de planejamento sucessório mais utilizadas, pois é personalíssima e reversível. Ou seja, apenas o titular da herança pode testar, e ele tem poderes para modificar ou revogar o testamento a qualquer momento.
Além disso, diferentemente do que muitos pensam, a existência de testamento não atrasa a sucessão. Uma vez que o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que, mesmo havendo testamento, é admissível a realização de inventário extrajudicial. Desde que, em princípio, todos os herdeiros sejam capazes e estejam em comum acordo.
Nessa hipótese, o Judiciário somente será responsável por validar as disposições testamentárias, sendo a partilha finalizada em cartório.
Vale ressaltar que o Conselho Nacional de Justiça decidiu, em sede do Pedido de Providências 0001596-43.2023.2.00.0000, que também é viável o inventário extrajudicial com herdeiros menores e incapazes, desde que:
(i) haja consenso entre os envolvidos;
(ii) haja anuência do Ministério Público;
(iii) a partilha seja ideal, ou seja, que os menores e incapazes recebam o que está previsto em lei em relação a cada um dos bens a serem inventariados.
Herança pode diferir de patrimônio
Essas alterações, entretanto, são recentes, motivo pelo qual é importante confirmar com o cartório em questão a possibilidade de realização do procedimento, acompanhado de seus assessores especializados.
Em testamento, o testador pode dispor livremente da denominada parcela disponível, correspondente a 50% de sua herança, sendo possível, por exemplo, destinar essa parcela de bens a um amigo, parente específico ou a instituições do terceiro setor.
Note que a metade da herança não coincide, necessariamente, com a metade do patrimônio total do titular, uma vez que, se houver cônjuge sobrevivente do casamento ou união estável sob regime de comunhão parcial ou total de bens, ocorrerá, incialmente, a meação.
Os outros 50% da herança são, por lei, reservados aos herdeiros necessários, parcela chamada de legítima. Os herdeiros necessários são, inicialmente, os descendentes, em conjunto com o cônjuge ou companheiro.
Não havendo descendentes, são herdeiros necessários os ascendentes, também em conjunto com o cônjuge ou companheiro.
Doação pode ser anulada
Apesar de o testador ter a obrigação de respeitar a parcela da legítima devida a cada um dos herdeiros, ele pode definir como os bens serão divididos, evitando, por exemplo, que a propriedade de um bem tenha que ser dividida entre mais de um herdeiro, em condomínio.
Isso pode ser uma vantagem, pois, nos condomínios civis, a gestão do bem exige, via de regra, a concordância de todos os titulares, o que pode dificultar sua administração e gerar desentendimentos.
Vale salientar, ainda, que, na ausência de herdeiros necessários, o testador pode decidir sobre o destino de 100% de sua herança.
Tendo isso em vista, no caso em análise, se a filha Fernanda comprovar que o valor do imóvel doado por seus pais à Letícia ultrapassou o limite legal, fazendo com que ela e seu irmão recebessem uma parcela menor daquilo que lhes era devido a título de herança, essa doação pode ser anulada, parcial ou totalmente.
Utilização de cláusulas restritivas
As cláusulas restritivas de direito, também denominadas “gravames”, permitem que se imponham limitações à propriedade dos bens gravados, podendo ser utilizadas para proteção dos beneficiários e preservação do patrimônio familiar.
Elas podem ser instituídas tanto em testamento quanto em contratos de doação, mediante apresentação de justificativa para a sua utilização em relação a bens da parcela legítima da herança.
As principais são as cláusulas de incomunicabilidade, impenhorabilidade e inalienabilidade. A primeira impede que os bens gravados se comuniquem com o patrimônio do cônjuge ou companheiro do herdeiro ou legatário.
A segunda impossibilita que os bens sejam dados em garantia para o cumprimento de obrigações, como operações de crédito e dívidas privadas. A terceira proíbe a alienação dos bens para terceiros, o que inclui proibição à venda e à doação, sendo usualmente instituída com prazo específico, a fim de evitar efeitos adversos.
Diante disso, e pensando no caso apresentado, via de regra, a herança recebida por Fernanda comunica-se com seu cônjuge, pois são casados em comunhão universal de bens – algo que, vale ressaltar, não ocorreria se o regime de bens adotado fosse o da comunhão parcial ou o da separação total.
No entanto, para evitar esse cenário, os pais poderiam ter gravado os bens, em testamento, com uma cláusula de incomunicabilidade, impedindo, assim, que o cônjuge tivesse acesso à herança recebida por Fernanda.
Elaboração de testamento local ou constituição de trust
A justiça brasileira possui competência para partilhar os bens localizados no Brasil. Em sentido contrário, entende-se que a justiça brasileira não possui competência para partilhar os bens localizados no exterior, que deverão passar por um processo sucessório no exterior.
Sem a utilização de algum instrumento sucessório, geralmente, o processo sucessório de cotas de companhia sediada no exterior será o de inventário judicial. Neste caso, deverão ser seguidos, via de regra, os seguintes passos:
(i) realização de processo de inventário no Brasil em relação aos ativos aqui localizados;
(ii) finalizado o processo de inventário no Brasil, deve-se iniciar o processo de inventário na jurisdição de sede da companhia;
(iii) após a conclusão do processo de inventário, o juízo da jurisdição de sede da companhia fará a partilha das quotas.
A elaboração de um testamento na jurisdição de sede da companhia garante maior agilidade ao processo, não sendo necessário esperar o término do inventário no Brasil para dar início ao inventário local. Esta alternativa, entretanto, não evita o inventário local e ainda exige a contratação de advogados.
Outra alternativa é o trust, que consiste em uma relação fiduciária na qual uma pessoa (settlor) transfere a propriedade legal dos seus ativos a um agente fiduciário (trustee), que se torna responsável pela administração destes ativos em favor de um rol de pessoas (beneficiários).
No documento constitutivo do trust, é possível determinar que o trustee realize distribuições aos beneficiários quando do falecimento do settlor ou em outras hipóteses definidas em contrato, evitando, assim, o inventário local.
Testamento local, trust e outras alternativas
Dessa forma, no caso em questão, os pais poderiam ter elaborado um testamento local, constituído um trust ou buscado outras alternativas para regular a sucessão, conforme suas necessidades, com o intuito de tornar o processo sucessório menos moroso.
Os instrumentos jurídicos mencionados nesse artigo não são os únicos, existindo diversas outras possibilidades.
O mais importante é avaliar as alternativas para traçar o plano que melhor atenda às necessidades específicas da família, pois um planejamento patrimonial personalizado e bem estruturado pode trazer mais segurança e harmonia familiar em momentos de vulnerabilidade.
Leia a seguir