Após 35 anos do Plano Collor, medo de novo confisco da poupança ainda assombra brasileiro

Era 16 de março de 1990. Haviam-se passado pouco mais de 24 horas da posse do governo de Fernando Collor de Melo. Numa coletiva de imprensa, a ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de Mello, anunciava um pacote radical de medidas econômicas. Era o Plano Collor.
Posteriormente tido como um dos maiores equívocos da história econômica recente, o que veio a público oficialmente como Plano Brasil Novo ainda mantém traumas na rotina financeira do brasileiro. Mesmo após 35 anos.
Um deles teve a ver com a mais polêmica das medidas: a retenção dos recursos bancários por 18 meses.
Isso envolvia tudo o que superasse 50 mil cruzados novos, algo equivalente hoje a pouco mais de R$ 10 mil.
Embora tecnicamente não seja um confisco, porque os recursos começariam a ser devolvidos gradualmente, com correção, assim o plano ficou conhecido.
Outras medidas previstas no pacote ainda sobrevivem, como a Imposto sobre Operações Financeiras (IOF).
Mas o trauma do ‘sequestro de bens’, outro termo da época, ainda é o que mais reverbera.
“Não dá pra esquecer o que aconteceu”, diz o professor Alexandre Cardim, 56 anos, que viu o pai perder uma quantia considerável na época.
Por trás de um estrangulamento econômico que levou o País a uma contração de PIB de 4,3% em 1990, uma das maiores da história, estão casos de pessoas comuns. Afinal, todo mundo com idade suficiente se lembra onde estava quando o governo confiscou a poupança.
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Medos conscientes e inconscientes de confisco de bens
Segundo veteranos profissionais da indústria financeira, o temor do sequestro de bens pelo governo ajuda a explicar a insaciável busca do investidor brasileiro por ativos de alta liquidez, de preferência diária.
“É um traço comum a todas as classes de investidores no Brasil, pessoa física, empresa, até fundos de pensão”, diz o CEO da Sparta, Ulisses Nehmi.
Na verdade, esse traço já existia antes. Então, a referência do mercado era o overnight. Mas a hiperinflação ajudava a explicar .
No entanto, mesmo mais de 30 anos da estabilidade trazida pelo Plano Real (1994), a obsessão pela liquidez ainda predomina, agora com o CDI.
Numa ilustração dessa realidade, no ano passado as captações da Caixa Econômica com Letras de Crédito Imobiliário (LCI) desabaram, após o Conselho Monetário Nacional (CMN) alongar o prazo mínimo para emissão com esse tipo de instrumento.
“O investidor ainda não tolera prazos maiores”, disse o vice-presidente de Finanças da Caixa, Marcos Brasiliano.
Confisco hoje é proibido na Constituição, mas medo permanece
Em 2001, para assegurar que algo do tipo nunca mais aconteceria, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional nº 32.

Ela proíbe expressamente a edição de medidas provisórias para detenção ou sequestro de bens, de poupança ou qualquer outro ativo financeiro.
Além disso, qualquer governante sabe das implicações políticas de uma medida desse tipo.
“Foi um desastre tão grande que hoje ninguém ousaria repeti-lo”, disse o CEO da Ouro Preto Investimentos, João Baptista Peixoto.
Ainda assim, o fantasma de um novo confisco sobrevive e cresce em momentos de crise econômica ou de eleições.
Segundo dados do Banco Central, o recorde de saída líquida de recursos da poupança foi em 2022, ano da última corrida presidencial no Brasil: R$ 103 bilhões.
Além disso, levantamento da Anbima aponta que 3% da população ainda prefere deixar a reserva em casa, em espécie.
“O medo de novo confisco é realimentado por lendas urbanas e, mais recentemente, por fake news”, disse o sócio do Streck e Trindade Advogados e professor de mestrado e doutorado em Direito da Unisinos, Lenio Streck.
Nesse sentido, ele citou o caso recente envolvendo o Pix, no qual o governo suspendeu medida fiscalizatória de transferências por meios digitais após viralizarem insinuações de que o instrumento seria uma preparação para taxar as transações.
Uma história fracassada de domar o dragão da inflação
Pode parecer inacreditável hoje, mas o Plano Collor no inicio teve amplo apoio empresarial e político, inclusive de expoentes de partidos de oposição.
No contexto da época, a medida fazia sentido. Era o pico de uma tentativa desesperada de domar o que então se convencionou chamar de ‘dragão da inflação’ e que lembrava a situação vivida pela Alemanha entre a primeira e a segunda guerra mundial.

“Como pano de fundo, havia um País que não aguentava mais”, disse o ex-presidente do Banco Central Gustavo Loyola, ele mesmo diretor do Banco Central na época.
O descontrole de preços era consequência do aumento exponencial da dívida externa do País, herança da má gestão da economia durante os anos de governo militar (1965-1985).
Antes de Collor, já houvera uma sucessão de planos econômicos fracassados – Plano Cruzado (1986), Plano Bresser (1987), Plano Verão (1989) – , todos com o objetivo principal de controlar a hiperinflação persistente que, nos priores momentos, chegou a incríveis 3% ao dia.
Sabendo da disposição de parte da sociedade de aceitar algo mais assertivo, Collor, porém, radicalizou.
Além do pequeno grupo de economistas que articulou o plano, quase ninguém mais participou da sua formulação.
“Eu mesmo era diretor do BC na época e só fiquei sabendo três dias antes”, disse Loyola. “Ninguém do BC participou da elaboração do plano”.
Com o malogro das novas tentativas, Collor posteriormente editou o Plano Collor II, em 1991, e o Plano Marcílio, referência ao ministro Marcílio Marques Moreira, sucessor de Zélia no Ministério da Fazenda, todos também fracassados.
Crescentemente impopular e com o governo mergulhado em denúncias de corrupção, Collor renunciou ao mandato em 1992 para escapar de um processo de impeachment.
Segundo Loyola, atualmente o grande assunto econômico é a dificuldade de domar os gastos públicos, algo que também era uma das raízes dos problemas da inflação dos anos 1990.
“Os governos deveriam fazer uma política fiscal melhor para ajudar a política monetária do BC”, diz ele. “Em vez disso, continuam gastando e procurando bodes expiatórios”.
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