A longevidade do real e suas lições

A história de sucesso do real mostra que é crucial manter boas práticas em bancos públicos

O dia 1º de julho de 1994 será para sempre uma data histórica para a economia brasileira. Há exatos 30 anos entrava em circulação o real, a moeda que se tornaria a mais longeva de todos os padrões monetários brasileiros desde o tempo dos réis.

O Plano Real eliminou de forma primorosa a hiperinflação ao inicialmente promover a convivência entre uma unidade de conta estável (a URV) e um meio de pagamento precário (o cruzeiro real). Isto levou a um rápido processo de substituição, que permitiu em pouco tempo a criação de uma nova moeda completa e estável, o real. 

Depois de inúmeros planos fracassados e “choques heterodoxos”, o Plano Real inicialmente não era percebido como algo com grandes chances de sucesso – era como o  “oitavo casamento de Elizabeth Taylor”, em uma descrição feita na época.

As lições do Plano Real

Neste contexto, o fim súbito da hiperinflação, propiciado pelo Plano, naturalmente criou a percepção de que o problema inflacionário foi resolvido com uma “bala de prata” ou um “passe de mágica”.

Esta avaliação, no entanto, não faz jus a todas as medidas no entorno que, embora impulsionadas pelo sucesso inicial do Plano, corroboraram não apenas para a estabilização inflacionária naquele momento, mas também para a longevidade do real até os dias de hoje.

Com o fracasso do Plano Cruzado de 1986 e dos planos que o sucederam, havia na ocasião uma percepção cada vez mais clara de que a hiperinflação era uma doença grave, cuja cura envolvia um tratamento frontal de suas causas, não apenas de seus sintomas.

A alternativa a congelamentos de preços e desindexações, práticas de planos anteriores que tratavam os sintomas, foi a criação em 1993 do Programa de Ação Imediata (PAI), que pouco tinha de imediato e, na verdade, criou um roteiro importante para as reformas que seriam perseguidas nos anos seguintes, visando garantir uma estabilidade monetária duradoura. Para isso, o PAI combinava medidas de natureza fiscal com uma ampla reforma monetária.

Corte de gastos

Do lado fiscal, o programa previa cortes de gastos através da revisão do orçamento de ministérios e de repasses para estados e municípios, além de privatizações de empresas públicas. Alguns meses depois, em fevereiro de 1994, foi criado o Fundo Social de Emergência (FSE), antecessor da atual Desvinculação de Receitas da União (DRU), com o objetivo de atenuar a rigidez dos gastos públicos, em um contexto de cortes.  

Do lado monetário, planejava-se ajustes nos bancos privados e o saneamento de bancos estaduais e federais, o que de fato foi levado a cabo nos anos seguintes à criação do real.

O resultado deste processo foi a liquidação ou privatização de inúmeros bancos estaduais e federais, além do saneamento das contas públicas de estados, medidas que mais adiante permitiram a criação da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Mudança no sistema bancário: uma das lições do Plano Real

As mudanças no sistema bancário também permitiram estabelecer um pilar indispensável à durabilidade da nova moeda: a separação da atividade bancária (e, portanto, da criação de moeda bancária) da condução da política fiscal nos âmbitos federal e estadual.

Neste processo, foi também de suma importância a redução dos membros do Conselho Monetário Nacional, que também em 1º de julho de 1994 diminuiu para três membros, ao excluir vários ministérios e bancos públicos que antes lá figuravam com grande número de votos.

A força do Banco Central

Portanto, ao invés de um choque econômico, o PAI representou um plano de vôo que, ao ser executado ao longo dos anos, foi restabelecendo o Banco Central do Brasil como a única autoridade monetária do país, ao mesmo tempo em que isolava suas atividades da influência de demandas fiscais.

A ênfase que o PAI colocava no fundamento fiscal atendia a recomendação feita por Thomas Sargent, o grande economista americano que viria a ganhar o prêmio Nobel em 2011, em cartas abertas ao ministro da Fazenda do Brasil.

“Causas fiscais da inflação”

Na primeira carta, de janeiro de 1986, dirigida a Dilson Funaro, Sargent questionava a pouca atenção que se dava naquele momento às “causas ficais da inflação”, em um momento em que a indexação, e não a monetização de déficits, era percebida no Brasil como a causa primordial da inflação. A carta de Sargent acabou se provando premonitória sobre o fracasso do Plano Cruzado.

Em novembro de 1993, Sargent escreveu outra carta aberta, dessa vez ao então ministro FHC, em que parafraseava Milton Friedman ao escrever que uma “inflação alta e persistente é sempre e em todo lugar um fenômeno fiscal, em que o Banco Central é um cúmplice monetário”. Desta vez, a frase lapidar de Sargent vinha ao encontro do que o governo e sua equipe econômica entendiam como crucial para a estabilidade monetária.

Regime de metas

Embora nos anos imediatamente seguintes à criação do real o governo não tenha obtido superávits primários substanciais, a mudança de regime fiscal preconizada por Sargent se manifestou alguns anos depois em superávits persistentes e, antes disso, nas reformas monetárias e bancárias. Estas mudanças foram cruciais para outros avanços, como a criação do regime de metas de inflação e a recente lei de autonomia do Banco Central.

Ter essa perspectiva mais ampla sobre o que propiciou o real chegar com sucesso aos 30 anos de idade é imprescindível para evitar erros e garantir que o padrão monetário continue completando novas décadas de existência. Em particular, fica clara a importância de ter um regime fiscal que não seja dominante em relação à política monetária.

Política monetária x política fiscal no Plano Real

Para isso, além da inquestionável necessidade de uma trajetória de endividamento público sustentável, é fundamental ter a separação de facto entre política monetária e política fiscal, evitando assim, nas palavras de Sargent, que a primeira seja cúmplice da segunda em um processo de alta da inflação.

A história de sucesso do real mostra que também é crucial manter boas práticas em bancos públicos, sem atuação anticíclica como norte e mantendo capitalização adequada.

Estas são lições contemporâneas que advêm da longevidade do real, e que vão além do Plano Real em si. Que sejam seguidas!