Garry Kasparov foi o primeiro campeão mundial de xadrez a ser derrotado por um supercomputador. Um desafio épico entre homem e máquina que marcou a superioridade inédita da inteligência artificial contra um humano. Aconteceu em maio de 1997, quando Deep Blue, o supercomputador criado por cientistas da IBM, e que havia perdido para o Grande Mestre em 1996, finalmente o venceu em uma revanche marcada por muitas emoções.
O que não se sabia na ocasião, é que Kasparov na verdade tinha sido o último campeão mundial de xadrez a vencer um supercomputador.
A implacável lei de Moore, segundo a qual a capacidade computacional dobra a cada cerca de dois anos, fez com que os sucessores humanos de Kasparov não tivessem qualquer chance contra as novas gerações de supercomputadores.
A derrota de Kasparov chamou atenção do mundo para o poder da inteligência artificial (IA) e, para muitos, marcou o início de preocupações sobre o que esses avanços tecnológicos implicariam para o futuro da humanidade. Se o grande gênio do xadrez foi ultrapassado pela máquina, o que dizer do resto de nós?
A distopia das máquinas
Nesse contexto, o surgimento de visões distópicas é inevitável. Tais visões vem ganhando renovado impulso mais recentemente, com os impressionantes avanços da Inteligência Artificial generativa, um conjunto de novas tecnologias de aprendizado de máquinas que gera conteúdos – como textos, imagens, música, vídeos – analisando padrões em dados existentes.
O impacto da IA generativa pode ser particularmente avassalador para o mercado de trabalho. Certas profissões podem desaparecer rapidamente, enquanto novas surgirão. Mas como se dará esse processo?
Avanços tecnológicos anteriores tipicamente tiveram implicações bastante negativas para profissões de baixa qualificação, muitas das quais foram automatizadas. Enquanto isso, trabalhadores altamente qualificados pouco sofreram, o que contribuiu para uma significativa piora da distribuição de renda.
Seria natural imaginar que a IA generativa teria impactos similares – isto é, desproporcionalmente negativos sobre os trabalhadores de baixa qualificação. Só que não é isso que as primeiras evidencias sugerem.
Um estudo recente*, em centrais de atendimento ao cliente, analisou o impacto de tecnologias de IA generativa que proveem orientações de conversação para os atendentes. A evidência sugere que os ganhos (medidos como número de demandas de clientes resolvidas por hora) foram desproporcionalmente maiores para os atendentes menos experientes e menos qualificados.
O motivo parece ser o seguinte: a IA generativa captura e dissemina padrões de comportamento dos melhores atendentes para todos os atendentes. Ou seja, a IA generativa ajuda a “nivelar pelo alto” todos os trabalhadores.
Ondas anteriores de automação não tiveram esse mesmo impacto. O motivo é que, até então, computadores e softwares necessitavam de instruções explícitas e precisas para operarem adequadamente – isto é, precisavam de programadores qualificados para funcionar.
Com a IA generativa, por sua vez, o aprendizado de máquina infere instruções a partir de exemplos. Por isso, esses sistemas conseguem capturar o conhecimento tácito (aquele que não se consegue expressar de forma explícita, tipicamente intuitivo e não verbal). Em particular, esses modelos são capazes de aprender quais comportamentos caracterizam trabalhadores de alta performance e, assim, disseminam suas práticas para os demais trabalhadores.
O resultado é que modelos de IA com aprendizado de máquina expõem trabalhadores de baixa qualificação a novas habilidades, gerando assim impactos positivos importantes sobre a produtividade do trabalho.
Inteligência Artificial: maior desigualdadade… será?
Embora preliminares, essas evidências trazem uma mensagem bem mais positiva do que é o senso comum sobre IA.
Ondas anteriores de automação provocaram um aumento da desigualdade de renda, ao eliminaram trabalhos repetitivos e aumentarem o prêmio salarial de trabalhadores suficientemente qualificados a dar instruções de forma adequada ao computador.
Já a atual onda de inovação, baseada na IA generativa, tem o potencial de aumentar a produtividade (e, portanto, a remuneração) do trabalhador menos qualificado, permitindo a reduções de desigualdades salariais.
O resultado é que o futuro distópico, previsto por alguns, a essa altura parece ser menos provável do que um futuro bastante próspero e menos desigual em que homem e máquina operam juntos, gerando resultados muito positivos.
Kasparov à frente do seu tempo, de novo
Inúmeras perguntas sobre os impactos da IA generativa permanecem não respondidas. Mas está ficando claro que, por ser uma tecnologia que aprende com os bons exemplos e não requer instruções específicas, seus impactos podem ser frequentemente mais complementares do que substitutos ao trabalho humano, mesmo o de baixa qualificação.
Voltando a Kasparov: em seu livro Deep Thinking ele descreve um novo campeonato de xadrez criado por ele depois de sua derrota para o Deep Blue. Nele, ao invés de haver apenas confrontos homem/máquina, foram formados times de homem+máquina. Isto é, jogadores humanos puderam ter o suporte de computadores durante as partidas. O resultado foi o nível de xadrez mais elevado jamais visto, com os times de “cyborgs” dominando até os computadores mais poderosos.
O que acontece no mundo do xadrez em termos de avanços tecnológicos é frequentemente útil para inferir o que está por vir no resto do mundo. No caso da IA, este parece ser o caso novamente.
*Brynjolfsson, Erik, Danielle Li, Lindsey R. Raymond, “Generative AI at Work”, NBER Working Paper 31161.