Análise: Lei de Criptoativos deve mitigar o risco do “moral hazard”

Texto da nova legislação se contrapõe à ausência de intermediários no mercado de tokens, segundo artigo do JOTA

(Foto: Art Rachen/Unsplash)
(Foto: Art Rachen/Unsplash)

Há no mundo atualmente cerca de 21.910 criptomoedas, cujo modelo de valorização se fundamenta, principalmente, na relação de oferta e procura (CoinMarketCap, 11/2022). Era, pois, uma questão de tempo que chegasse à regulação governamental, ainda que as negociações sejam publicamente acessíveis através de blockchain.

Há fatores próprios de negociação de valores mobiliários, como o excesso de confiança em um produto, a velocidade de compra e venda e a assimetria de informação, que podem levar danos às partes que negociam os valores, como o “moral hazard”, denominação para risco moral. Ocorre quando um determinado agente financeiro recebe incentivos para atuação no mercado. Todavia, não é o único ou o principal agente a suportar os ônus e eventuais prejuízos da operação. Podem existir ainda incentivos para que dado agente gere comportamentos dúbios às custas das contrapartes, que passam a arcar com o maior volume dos riscos.

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O mundo dos criptoativos não fica alheio às demandas de sustentabilidade, nas vertentes ambiental, social e de governança do ESG. Dentre os benefícios dos criptoativos têm-se o acesso global e sem barreiras a valores e investimentos, garantindo-se (i) a possibilidade de fixação de criptomoeda como moeda oficial, a exemplo da adoção do bitcoin por El Salvador, (ii) baixo custo para transacionar, (iii) pagamentos quase que instantâneos, que é o objetivo do Pix, (iv) taxas de transação bem mais módicas em geral e (v) menor variação da moeda e proteção contra inflação, a exemplo das stablecoins pareadas em dólar norte-americano.

Ampliar o acesso à bancarização também é um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável estabelecidos pela ONU (ODS), já que a discrepância é grande na comparação entre os países desenvolvidos, nos quais, em média, 96% das pessoas possuem acesso ao sistema financeiro contra apenas 67% de países em desenvolvimento. Logo, o potencial inclusivo dos criptoativos deve ser somado a uma governança que amplie a sustentabilidade dos tokens a longo prazo para preservação e aumento de capital.

Tal possibilidade de inclusão em larga escala exige que as emissoras de tokens tenham estratégias de negócios sustentáveis, que não prezem por ganhos tresloucados a transferir riscos para além dos limites a serem suportados pelos investidores, uma vez que se exige também a governança de mercado, além da perspectiva corporativa em si, mormente com a inclusão do ESG.

A nossa Lei de Criptoativos não inova ao apresentar a fixação de órgão regulador federal em seus arts. 2º e 8º, mas se contrapõe à ausência de intermediários no mercado de tokens e, ao mesmo tempo, garante a incidência de norma local num contexto de negociações transfronteiriças. O art 4º evidencia ainda as boas práticas de governança e a defesa do mercado consumidor, dentre as quais está a proibição de moral hazard, enquanto que o art. 9º fixa os prazos céleres para regularização das emissoras e demais players que optem por oferecer estes serviços virtuais, afastando as negociações em mercados paralelos não regularizados. A própria CVM buscou fixar no seu Parecer 40/2022 a proteção do investidor e da poupança popular, visando à ampliação de horizontes e mitigar a “limitação da extensão com que direitos podem ser exercidos”.

Entendeu ainda a nossa CVM que a transmissão “por meio criptográfico ou baseado em tecnologia de registro distribuído é irrelevante para o enquadramento de um ativo como valor mobiliário ou para a submissão de determinada atividade à regulamentação da CVM”. Cabem nestes casos os mesmos princípios de transparência sobre as empresas que negociem estes ativos.

Compete ao Banco Central, enquanto autoridade pública federal, a tomada destas medidas de regulação. Em seu ato inaugural, estabeleceu o Grupo de Trabalho Interdepartamental (GTI Tokenização), através da Resolução 273/2022.

Dos subprimes à FTX

Eventualmente, alguns fatos relevantes podem estimular o legislador a acelerar a tramitação de determinados temas que, mesmo representando desafios transfronteiriços, exigem respostas locais. Em 2022, a exchange de criptoativos FTX teve decretada sua falência. Era uma das maiores corretoras de criptoativos do mundo, cujo valor de mercado atingiu, em janeiro deste mesmo ano da quebra, a gigantesca soma de US$ 32 bilhões, conforme noticiado pela Reuters, o que estimulou o fortalecimento de uma regulação que, caso existisse, poderia ter evitado ou reduzido os prejuízos dos investidores. Este movimento replica, em uma escala menor, o processo regulatório dos subprimes no contexto americano pós-crise de 2009.

À época, os direitos de cobrança de hipotecas imobiliárias foram negociados com avaliações muito infladas. O resultado foi um mercado inundado por direitos creditícios de baixa qualidade e sem lastro real. Quando os credores que detinham os títulos tentaram executá-los, a bolha da crise estourou e os bancos, tanto quanto os devedores, viram-se sem capacidade de honrar com as dívidas e de recuperar os valores devidos.

Até então, bancos que se vissem incapacitados de cumprir com suas obrigações eram parcialmente resgatados pelo governo, o bail-out. A ferramenta reduzia o risco das operações e o transmitia para o Tesouro norte-americano. Após essa crise, a lógica do mercado mudou para o bail-in, de maneira que os riscos seriam cobertos pelos papéis internos do próprio agente financeiro, o que exigiu monitoramento interno dos acionistas e demais stakeholders, afastando uma alta incidência de ações imprudentes por parte dos agentes e funcionários.

Assimetria informacional e moral hazard

Dentro da crise que permeia o mercado financeiro, há um aspecto chamado moral hazard. A ideia ora posta é que esse conceito é inversamente proporcional à habilidade dos investidores dispersos de observarem a “sabedoria da multidão” de forma clara e não enviesada e tomarem decisões de compra que sejam fundamentadas na realidade, mantendo uma comunicação que pode evitar danos futuros em favor de ganhos presentes. Ocorre que estes pequenos investidores individuais têm pouca ou nenhuma capacidade para reduzir assimetrias informacionais ou, ainda, verificar se as alegações das emissoras dos tokens são verdadeiras, o que permite que especulações enviesadas permaneçam indetectáveis até que eventos relevantes de mercado ocorram.

Uma análise empírica, com o uso de inteligência artificial linguística, realizada sobre 495 ofertas internacionais de tokens atestou que whitepapers emitidos pelas emissoras de tokens exageraram, sistematicamente, as informações apresentadas.[4] Isso cria o chamado mercado de limões, contexto no qual o vendedor está mais bem informado do que o comprador, que é o caso de Sam Bankman-Fried (SBF), o fundador e ex-CEO da FTX.

A assimetria de informação no momento da oferta de tokens, criada em razão de vieses nos whitepapers, causa o afastamento de investidores que poderiam tomar decisões de compra mais claras. Mesmo nos casos em que há o compartilhamento voluntário de informações no começo das operações, as partes tendem a não crer muito nos informes. Os sinais geradores de moral hazard são (i) a criação de um sinal que seja difícil de ser copiado e que seja creditador de viabilidade para os tokens e (ii) a disseminação da informação, via de regra, por redes sociais.

Deste modo, ventures que reportam perspectivas reais de desempenho terão uma desvantagem competitiva, o que leva à conclusão de que comportamentos que promovam moral hazard, fundados em estratégias de majoração do valor dos tokens, podem ser vantajosos imediatamente após o lançamento dos mesmos no mercado, enquanto os investidores dispersos forem incapazes de se coordenar e avaliar o real valor daqueles tokens. Players de mercado com mais capacidade de analisar contextos e discriminar quais informações de whitepapers são coerentes acabam levando vantagens.

Há uma dificuldade entre os investidores para promover articulação entre si, de modo que as tomadas de decisões individuais gerem efeitos previsíveis e desejados por todos eles. A falta de expertise tecnológica é um dos fatores agravantes a dificultar uma análise de ventures em estágio inicial de lançamento ou com produtos não desenvolvidos.

O próprio custo para os pequenos investidores de uma estrutura comum de compartilhamento de informações inviabiliza essa estratégia. Nem mesmo os agregadores de informações, como o ICObench, têm capacidade de mitigar este problema. O excesso de ofertas – em média três diárias – também dificulta o acúmulo de conhecimentos pelos investidores em tempo razoável, o que pode levá-los a prejuízos e impedir o desenvolvimento, a longo prazo, da empreitada.

Fica claro, ainda, uma postura que sufoca a governança corporativa, causando um descolamento entre objetivos de curto prazo (opções de saída) e os de longo prazo (crescimento de capital), levando a severos riscos morais (moral hazard). Alguns influenciadores digitais foram alvo de ações indenizatórias por terem articulado movimentos rápidos de promoção e venda de criptoativos pouco conhecidos, como o EthereumMax, o qual, após altas iniciais, acumulou perdas de 97%, entre junho de 2021 e janeiro de 2022. E, após o colapso da FTX, grandes celebridades, como o jogador de futebol americano Tom Brady e a modelo Gisele Bündchen, estão sendo processados por investidores da FTX pela participação em anúncios publicitários, que transmitiam imagem de excelência e confiabilidade desta famigerada exchange.

Inexistência de intermediários

A ausência de intermediários é uma premissa da negociação de tokens, todavia, o acesso a informações pelo pequeno investidor resta deveras dificultado. Nota-se que, após a crise de 2009, a principal resposta do Tesouro norte-americano foi a regulação do mercado de concessão de créditos (revisar redação e literatura).

A atuação de terceiros reguladores pode reduzir a assimetria informacional, tal como já ocorre no caso de IPOs. Na inexistência de intermediários, há uma majoração da pressão para captação de recursos, especialmente por causa da limitação da quantidade de tokens lançados. Se presentes, intermediários podem aliviar a pressão, através do pareamento por perfil entre investidores e empresas, visando à manutenção de negócios futuros.

Trata-se da aplicação da teoria dos jogos, pois os intermediários estão dentro de “jogos sequenciais”, contrastando com jogos de disparo único (one-shot), que comportam mais risco e tendem a explorar a assimetria informacional. Cria-se, ainda, uma incapacidade de verificação ex ante quanto à veracidade das informações encaminhadas, que seriam atestáveis através de associações de investidores, código de honra e instituições de certificação. Resta ausente, também, a punição ex post contra os que compartilharam sinais enviesados com o mercado. Neste cenário, o moral hazard torna-se mais provável.

O ideal, para evitar ou minorar o moral hazard em um mercado em expansão, é a adoção de uma postura de full and fair disclosure como fundamento informacional, tendo como referência a regulação americana do Securities Act de 1933, defendida por Brandeis quanto à necessidade de publicização de informações.

Assim, comunicação clara, monitoramento dos dados compartilhados e abertura do diálogo com os stakeholders podem suprir cada público de conhecimentos apropriados e adequados aos contextos de tomada de decisão. Ao menos, o pontapé foi dado pelas exchanges remanescentes, que estão a aplicar o Proof of Reserves (PoR): uma forma de verificar se uma instituição possui reservas suficientes para respaldar todos os saldos de clientes, por boa governança, conduzido por auditorias independentes. É um bom passo para também adotarem o Proof of Liabilities (PoL), como comprovação de que a quantidade total de moedas devidas por uma exchange aos seus clientes não ultrapassa suas reservas. Com a soma do Proof of Reserves e Proof of Liabilities, chega-se ao Proof of Solvency, que serve de atestado da boa saúde de uma exchange, ou seja, de que os ativos cobrem os passivos.

(Por Thiago Gomes Marcílio, advogado do escritório Lee, Brock, Camargo Advogados; Yun Ki Lee, sócio do Lee, Brock, Camargo Advogados; Kristian Lee, analista sênior de negócios na plataforma de investimentos Warren Brasil)
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