Análise: Investimentos ESG e a responsabilidade civil pela prática de bluewashing
Veiculação de informações falsas sobre cumprimento de normas viola direitos de investidores e impõe a empresas dever de indenizar, segundo Thales Cavalcanti Coelho
O Ministério Público brasileiro, de modo geral, e o Ministério Público Federal, em específico, têm atuado expressivamente em face de violações de direitos humanos por empresas, notadamente no que se refere à proteção do meio ambiente, à defesa dos direitos das populações indígenas e de comunidades tradicionais, ao combate ao trabalho escravo e à prevenção de desastres.
Nessa seara, ganham destaque, em um primeiro momento, as ações direcionadas aos agentes econômicos causadores diretos de danos. São os casos, por exemplo: da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, ligada ao setor de energia; do rompimento das barragens de rejeitos de Fundão e da Mina do Córrego do Feijão, em Minas Gerais, vinculado à atividade de mineração; da contaminação por amianto, na Bahia, atrelada à indústria da construção civil; e do afundamento da zona urbana de Maceió, em Alagoas, relacionado tanto à atividade de mineração, quanto à indústria petroquímica.
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Contudo, muito embora a busca pela responsabilização dos causadores diretos de danos possa se revelar suficiente e adequada, ao menos em tese, em casos de desastres socioambientais de grandes proporções, como os mencionados no parágrafo anterior, em inúmeras outras situações de violações de direitos humanos tal linha de atuação se revela insuficiente, especialmente nas hipóteses de transgressões verificadas nas cadeias de fornecimento das corporações.
Com efeito, a experiência prática de atuação no Ministério Público revela que, muito embora o desmatamento e o trabalho escravo, por exemplo, beneficiem grandes empresas e, usualmente, ocorram com seu conhecimento (e até mesmo seu consentimento), na maioria das vezes não são por elas diretamente praticadas, mas sim por seus fornecedores, isto é, por agentes econômicos umbilicalmente vinculados à sua cadeia produtiva.
Diante desse cenário, e valendo-se de instrumentos jurídicos previstos no ordenamento nacional, como a responsabilidade objetiva ambiental, fundada na teoria do risco integral, e a responsabilidade civil-trabalhista, eventualmente fundamentada na teoria da subordinação jurídica estrutural e integrativa e na teoria dos contratos coligados e redes contratuais, o Ministério Público tem buscado a responsabilização de empresas por violações de direitos humanos ocorridas em suas cadeias produtivas, notadamente nos casos em que verificada a omissão do dever de fiscalização.
Nesse sentido, em junho de 2009, em uma atuação que ficou conhecida como Carne Legal, o Ministério Público Federal propôs diversas ações civis públicas contra pessoas físicas e jurídicas responsáveis por fazendas de gado da região amazônica onde verificada a prática do desmatamento, bem como contra frigoríficos que compravam espécimes bovinos criados nessas áreas. Paralelamente, o MPF encaminhou às redes de supermercados uma recomendação para que, sob pena de responsabilização, não comprassem carne ou couro de propriedades rurais onde verificada ausência de licenciamento ambiental, desmatamento, trabalho escravo ou sobreposição a terras indígenas.
Imediatamente, as redes de supermercados informaram sua disposição em acatar a recomendação, embora alegassem não terem meios para fiscalizar a proveniência lícita dos produtos em questão. Como efeito do acatamento das recomendações pelas redes de supermercados, foram firmados com os frigoríficos Termos de Compromisso de Ajuste de Conduta, conhecidos como os TACs da Carne, válidos para todos os estados da Amazônia Legal, tendo por objeto a regularização das atividades empresariais do ponto de vista ambiental e dos direitos humanos – o que de fato ocorreu, ainda que momentaneamente, e resultou em redução significativa dos índices de desmatamento no bioma amazônico nos anos seguintes.
De outro lado, também o Ministério Público do Trabalho tem atuado firmemente pela responsabilização de empresas por violações de direitos humanos em suas cadeias de produção, notadamente a exploração de trabalhadores em condições análogas à de escravo. Referida atuação, inicialmente focada na indústria têxtil, expandiu-se para outros setores, como as cadeias produtivas do carvão, do café e da carnaúba, e tem se mostrado bem-sucedida, especialmente em situações nas quais evidenciadas as seguintes circunstâncias: dependência econômica das subcontratadas em relação à empresa principal; exclusividade ou quase exclusividade da produção da subcontratada; controle pela empresa principal da qualidade e quantidade dos produtos adquiridos; ausência de controle para verificação das condições de trabalho de terceirizadas e quarteirizadas; e vantagem econômica pela exploração da mão de obra em condições consubstanciadoras de escravidão contemporânea.
Contudo, a atuação do Ministério Público em face de empresas causadoras de danos ambientais ou violadoras de direitos humanos – quer diretamente, quer por meio de seus fornecedores –, não tem se revelado eficiente para evitar que essas mesmas empresas se apresentem perante o mercado de consumo e o mercado de capitais como ambientalmente sustentáveis e socialmente responsáveis.
Não raramente, corporações que estão envolvidas em grandes desastres socioambientais, que possuem entre seus fornecedores (diretos ou indiretos) integrantes da lista suja do trabalho escravo do Ministério do Trabalho e Previdência ou, ainda, que exploram economicamente terras indígenas ou unidades de conservação de proteção integral têm buscado associar suas marcas à agenda ESG, por vezes, inclusive, pleiteando o ingresso em índices de sustentabilidade empresarial de bolsas de valores ou buscando a obtenção de certificações de responsabilidade social corporativa – em clara prática de greenwashing ou bluewashing, a depender do caso.
Em face desse quadro, tem se mostrado imprescindível, por parte do Ministério Público, a atuação específica na defesa dos direitos de consumidores e investidores em face de empresas que operam em desconformidade com a legislação ambiental e as normas de direitos humanos e que, ainda assim, atuam para associar sua imagem à pauta ESG.
No campo do direito do consumidor, a publicidade enganosa relativa a quaisquer dados sobre produtos ou serviços, inclusive no que se refere a seu modo de produção ou prestação “ambientalmente sustentável” e “socialmente responsável”, é expressamente vedada pela Lei 8.078/1990 (art. 37), ensejando a responsabilização de fornecedores em caso de sua veiculação, a partir de ação coletiva ajuizada pelo Ministério Público ou outro legitimado, nos termos dos artigos 6º, IV e VI, 81 e 82, I, todos de mencionado diploma legal.
Da mesma maneira, por força do art. 1º, III, da Lei 7.913/1989, compete ao Ministério Público a adoção de medidas judiciais necessárias – sem prejuízo das extrajudiciais – para evitar prejuízos ou para obter ressarcimento de danos causados aos titulares de valores mobiliários e aos investidores do mercado, quando decorrerem da omissão de informação relevante ou de sua prestação de forma incompleta, falsa ou tendenciosa, por quem seja obrigado a divulgá-la.
Cabe ressaltar que, atualmente, no ordenamento jurídico brasileiro, a Resolução CVM 59/2021 impõe às companhias de capital aberto, nos termos do art. 22, § 1º, I, da Lei 6.385/1993, o dever de prestarem informações relacionadas a aspectos ambientais, sociais e de governança corporativa, bem como estabelece os parâmetros por meio dos quais tais dados devem ser apresentados.
Conquanto não haja dúvidas acerca da obrigação de indenizar das sociedades empresárias em casos de violação do dever de prestação de informações autênticas e completas ao mercado quanto à conformidade à legislação ambiental e às normas de direitos humanos, a responsabilidade civil – que, nesses casos, tem natureza objetiva, por força do art. 927, parágrafo único, do Código Civil – não se restringe a referidas pessoas jurídicas.
Com efeito, em tais situações, também o administrador da sociedade anônima de capital aberto poderá ser civilmente responsabilizado pelos prejuízos que causar com referidas condutas, quer em razão de violação aos deveres que lhe são impostos pela lei ou pelo estatuto, quer em virtude de atuação com culpa ou dolo, ainda que inserida dentro de suas atribuições ou poderes, nos termos do art. 158 da Lei 6.404/1976.
No mesmo sentido, não se pode olvidar que, a teor do art. 116, parágrafo único, também da Lei n. 6.404/1976, o acionista controlador está obrigado a usar seu poder para fazer cumprir a função social da empresa, bem como tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da companhia, os empregados dessa e para com a comunidade em que atua, devendo lealmente respeitar e atender seus direitos e interesses, sob pena de praticar ato ilícito, ficando assim obrigado a reparar os danos que causar, ainda que exclusivamente morais (CC, art. 927, c. c. os artigos 186 e 187).
Relevante pontuar que os danos morais em questão, a serem reparados pela empresa e, eventualmente, por seus administradores e controladores, incluem também os de natureza coletiva, cujo cabimento em casos de conduta fraudulenta por parte de sociedade empresária, que atinge investidores de forma igualitária e indivisível, já foi reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça por ocasião do julgamento do Recurso Especial 1.250.582/MG[6].
Alicerçado nesses fundamentos jurídicos, o Ministério Público Federal está atento para atuar não apenas na busca pela responsabilização de empresas que violam, direta ou indiretamente, os direitos humanos, como também na persecução das companhias, assim como de seus administradores e acionistas controladores, que se omitem no dever de prestar informações ou que divulgam dados inteira ou parcialmente falsos relativos à conformidade ambiental e social de suas atividades, colocando em risco a confiança de investidores na integridade do mercado de valores mobiliários.