‘Tchado’, ‘raspar’ e ‘grossapar’: entenda como funciona o farialimês, a língua de quem opera o mercado na Faria Lima
O faria limer não tem apenas um visual todo deles, ele também fala uma língua própria, com termos puxados do inglês e do mercado dos anos 70
Quando o especialista em fundos de criptomoedas Marcello Cestari colocou os pé na city, como também é chamado o Condado, ou melhor, a avenida Brigadeiro Faria Lima, conta que ficou confuso.
Seus novos colegas que como ele ocupavam a meca do mercado financeiro de São Paulo queriam saber se ele tinha tomado, se tinha raspado, ou tinha batido numa operação de trade (termo que designa a compra e venda de ativos).
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Recém-formado em administração de empresas e ainda no meio da pandemia (o ano era 2021), ele descobriu ali uma curiosa realidade. Não bastaria saber de finanças, comprar um relógio Garmin, vestir uma camisa em tons pasteis e um colete 100% poliéster para sobreviver por aquela vizinhança.
“Falei, caramba, eu não entendia porcaria nenhuma das conversas. Falei, ‘do que você está falando, cara?”, lembra, rindo.
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Cestari teve sorte de cair numa baia bacana, com faria limers solícitos. “Eles foram me explicando os termos. Eu escrevi umas palavras mais importantes num papel e está aqui, ó, até hoje, juro, olha aqui”, diz ele, mostrando ao repórter um post it amarelo, onde se lia: “tomar = comprar”, “raspar = consumir todos os lotes em um faixa de preço”. “Bater = vender.”
A língua da Faria Lima
A Faria Lima é uma avenida que corta três bairros da zona oeste de São Paulo: Pinheiros, Itaim e Vila Olímpia. Mas para o mercado financeiro, interessa um trecho pequeno, de apenas dois quilômetros, localizado entre as avenidas Presidente Juscelino Kubitschek e Cidade Jardim.
É meia dúzia de quarteirões que reúne os principais bancos de atacado, os escritórios de investimentos, as corretoras e as grandes casas de análise de São Paulo.
Por lá, circula uma tribo diferente. Como gosta de falar o Faria Lima Elevator, ou simplesmente FL Elevator.
Esse é um perfil das redes sociais alimentado por um autor que luta para se manter anônimo. Segundo ele, o faria limer é uma parte de uma galera “que acorda cedo para correr no Parque do Povo, usa calça cáqui (ou um vestido social e sapato scarpin) e toma mais xícaras de espresso do que copos d’água”.
Eles também têm uma linguagem própria, o farialimês.
Estagiário, não. Stag
“O Faria Lima Elevator tem uns posts no Instagram em que ele tira sarro. Diz que, se você encontrar uma mesa igual a minha, com esses post its, tem um estagiário lá”, conta Cestari.
Aliás, estagiário no Condado é stag (lê-se staaaagui). E, procurado, o influencer por trás do FL Elevator topou conversar com a reportagem. Mas desde que mantendo o anonimato. Deu entrevista por e-mail, repleto de cuidados. Tudo intermediado por sua equipe, provando que o menzinho tá bombado.
“Vez ou outra os estagiários trazem termos novos, mas dada a rotatividade dessa turma, os termos acabam não pegando”, diz.
“Esses dias o Enzo soltou que ‘a bolsa brasileira não tankava sem investidor gringo. Pedi a ele que me explicasse, e o garoto replicou afirmando que a bolsa brasileira sem investidor gringo flopa. Continuei sem entender. Ele riu. Eu ri. Nós rimos. Mandei ele explicar os termos lá na RH”, brinca.
Tankar, por exemplo, é uma novidade na Faria Lima. O termo nasceu no universo gamer, mais especificamente do jogo League of Legends (LoL), que simula uma batalha em que os jogadores estão em times e jogam online, todos ao mesmo tempo.
A palavra é sinônimo de aguentar, suportar. Já tem até um antônimo rodando pelo Condado: intankável.
Já flopar, vem do inglês flop, verbo que pode ser traduzido como fracasso. É comum também nas redes sociais, principalmente do marketing digital, para designar ações que não dão certo.
As origens do farialimês
Mas, de volta ao FL Elevator, ele usa, frequentemente, o farialimês em seus posts.
“Gosto muito das expressões “corrida de homem pelado” e “deu um barata voa” para designar quando está todo mundo perdido e tentando tomar uma atitude. Também sempre me surpreendi com a capacidade da língua em incorporar termos em inglês, para mim “grossapar” é o ápice do dialeto.”
É o próprio Faria Lima Elevator quem nos explica a origem dessa língua. Conta que o farialimês é orgânico. Vem sendo gestado desde os anos 70, pelos antigos operadores de mercado. Recentemente, ganhou a contribuição da nobreza paulistana da Zona Oeste, aquela galera que frequenta o clube Pinheiros ou o Paulistano.
Os mais antigos, diz, trouxeram expressões que hoje são clássicas. “Como o tá na pedra, quando a operação está fechada. Remete aos tempos de pregão físico em que as operações eram anotadas em um quadro-negro, a ‘pedra’, ele explica.
Outra das mais clássicas é o tchado. Essa é a palavra mais poderosa do mercado financeiro.
“Tchado é um ‘de acordo’ que, mesmo informal, se não cumprido pode implicar na perda de credibilidade do sujeito.” De um lado, um operador oferece uma boleta. Se, na outra ponta, outro operador falar ‘tchado’, pronto, o negócio tá concluído e o dinheiro precisa ser transferido.
As novidades da língua da Faria Lima
Assim, os termos clássicos convivem atualmente com novas trends, o tempero da nova geração. “A nobreza paulistana trouxe a pronúncia do português anasalado (enteinnnda, mêooo) e a introdução de termos em inglês aportuguesados, como grossapar, acruar, briefar e stoppar“, afirma FL Elevator.
Aqui vale mais uma nota do repórter. Grossapar vem de gross up, uma prática do mercado que consiste em embutir impostos em ativos isentos para fins de comparação com os tributáveis.
Acruar, então, é utilizado nos casos em que um título de renda fixa tenha rendimentos pagos periodicamente. Assim como briefar é passar informações sobre um assunto numa call, ou melhor, numa reunião.
Forma de inserção
Para a headhunter Tais Targa, profissional que atua na caça à talentos principalmente para o mercado financeiro e para empresas de marketing digital, o farialimês “é uma forma de inserção no grupo”.
“O profissional acaba adquirindo um vocabulário específico de cada cultura e segmento como forma de adequação à cultura organizacional”, explica.
Tais Targa lembra que trabalhava em uma empresa em que todos falavam ‘gargalo’, por exemplo, para designar uma dificuldade.
“Na verdade, o bom profissional sabe fazer leitura de cenários e transita através das linguagens em diferentes ambientes”, afirma.
Farialimês é um code switching
Essa adaptação de linguagem tem um nome entre os linguistas, chama-se code switching, que é quando você troca o código, a forma de falar, para se enquadrar ao meio ambiente. Como um professor que usa linguagem formal dentro da sala de aula, mas grita palavrões em um estádio de futebol.
O problema é quando se confundem os códigos, como lembra Raphael Bage Andrade, também trader da Faria Lima.
“Eu vi o pessoal na festa junina do clube Pinheiros falando que o mercado secundário estava um horror. Tipo, assim, você compra o ingresso (da festa junina) a R$ 200 e tem cara revendendo a R$ 1 mil”.
Marcello Cestari, que abre essa matéria, reparou que o preço do arroz estava mais caro no supermercado esses dias. Comentou com a família que o “pessoal estava spreadando o arroz”, numa referência a spread, que é a diferença entre o preço da compra e o preço da venda de uma transação financeira.
Nas festinhas do Condado, quando um faria limer dá um match com outro faria limer, seja ele homem ou mulher, o comentário é que fulano boletou sicrano. Calma, a referência serve apenas para um beijo inocente.
Agora, nada supera o flipar o IPO pra uma operação simples da vida, como comprar um tênis novo. Cestari, de novo, explica o contexto: “Alguns tênis têm edição limitada. Você compra num preço fechado e, depois, pode tentar vender por um preço maior”. Numa prova de que não é só a língua da rapaziada que remete ao mercado.
Uma simples ida ao shopping pode virar uma operação financeira.