Em meio à alta de preços de combustíveis, veja como o governo usa os dividendos que recebe da Petrobras
Enquanto Bolsonaro trava guerra de palavras com a empresa, governo tem caixa reforçado
A escalada dos preços internacionais do petróleo e a consequente alta dos preços dos combustíveis nos postos colocou a Petrobras novamente no centro de um debate: deve agir para evitar uma alta dos preços cobrados na bomba ou deve priorizar sua saúde financeira? Este debate não é novo, mas agora ganha outro elemento. O questionamento sobre para aonde vai o lucro da empresa, turbinado pela alta da cotação do barril.
No ano passado, a Petrobras registrou lucro recorde de R$ 106,7 bilhões. No primeiro trimestre de 2022, o lucro foi de R$ 44,5 bilhões. Embora o novo presidente da companhia, José Mauro Coelho, tenha declarado que “não há relação significativa entre os resultados e os reajustes dos preços dos combustíveis”, a percepção política parece ser outra.
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O presidente Jair Bolsonaro (PL) vem nos últimos anos travando uma guerra de palavras com a empresa por causa dos preços. Recentemente, ele classificou a margem de lucro da empresa como um “estupro” e disse que “vai entrar” na estatal por considerar os ganhos excessivos.
Contudo, Bolsonaro evita mencionar que a União recebe em forma de dividendos uma fatia polpuda do lucro da petroleira. E evita ainda mais mencionar o que a União faz como esse dinheiro.
A União é o maior detentor de ações da Petrobras com direito a voto, as ações ordinárias (ON), o que a torna controladora. Considerando todas as ações, inclusive as ações preferenciais (PN), que não dãodireito a voto, a participação é de 28%. Isso significa que, quando a Petrobras reparte os seus lucros com os acionistas, o governo é um dos que mais recebem dividendos.
De acordo com a Secretaria do Tesouro, vinculada ao Ministério da Economia, todo o valor dos dividendos que a Petrobras paga à União é direcionado para a amortização da dívida pública.
Isso significa que os R$ 25 bilhões que o governo receberá em dividendos dacompanhia entre maio e julho serão integralmente usados para pagar a dívida e financiar o próprio governo – este valor exclui os dividendos pagos ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDES), que também é acionista da empresa.
“Nos termos do art. 1º, inciso I da Lei nº 9.530/1997, serão destinados à amortização da dívida pública federal a receita do Tesouro Nacional decorrente do pagamento de participações e dividendos pelas entidades integrantes da Administração Pública Federal indireta, inclusive os relativos a lucros acumulados em exercícios anteriores”, esclareceu ao Valor a Secretaria do Tesouro.
“Como mais de 90% do gasto público federal não financeiro é obrigatório, quase toda a fonte de receita do governo é usada para o seu financiamento. Esse é um dos problemas do baixo grau de liberdade do orçamento público no Brasil”, diz o sócio e economista-chefe da Ryo Asset, Gabriel Leal de Barros. “A rigidez é enorme e amarra a mão do governo federal.”
A regra alimenta outra pergunta: os recursos da Petrobras poderiam ser usados de forma a gerar benefícios diretos à população?
Leal de Barros defende a necessidade de a Petrobras reajustar o preço interno dos combustíveis de acordo com os preços internacionais e o destino dado aos dividendos devido à necessidade das contas públicas do país. “Não é possível o contorcionismo de dizer que o lucro da Petrobras fere a sociedade, muito pelo contrário. A boa gestão, amparada pela paridade de preços internacionais, é o que garante o abastecimento de derivados de petróleo no país, atrai capital privado nacional e internacional e mantém a capacidade de investimento e governança da companhia”, avaliou.
Para o economista, o passado recente é a prova de que segurar preços é uma prática de má gestão que causou dano colateral na percepção de risco do país, ampliou a dívida da empresa e afastou o capital privado, ocasionando na perda da capacidade de investimento e sustentabilidade financeira da maior empresa do país. “Não funcionou no passado e não funcionará no futuro. Insistir por esse caminho seria um grande erro, repetido, de política econômica”.
Do outro lado, o professor de direito econômico e economia política da Faculdadede Direito da Universidade de São Paulo Gilberto Bercovici critica a política de preços da Petrobras e acredita que o governo prejudica o interesse público ao não usar de outra forma o que recebe em dividendos.
“O interesse público é que a Petrobras tenha a capacidade de ampliar a sua infraestrutura, a sua atuação, garantir preço justo de combustível, abastecer o país”, disse Bercovici, definindo que a estatal virou uma espécie de banco. “Virou um banco, uma financeira. Essa política de preços gerou isso. Ela ganha um lucro extraordinário e distribui para os acionistas ao invés de usar a maior parte para reinvestir, gerar empregos.” Na visão dele, a Petrobras está sendo desmontada da ideia original de ser empresa integrada de energia. “Ela ia do poço ao posto. Atuava em todas as fases da indústria de petróleo. Quando uma empresa é integrada, você consegue manter preços razoáveis compensando. Às vezes está mais caro o refino, mas está mais barato na distribuição. Está mais caro na importação, mas está mais barato na exploração. Vai compensando essas variações na própria estrutura da empresa e consegue manter uma estabilidade maior de preço. Desde 1953, a Petrobras fez isso”, diz. Na sua avaliação, a estratégia assumida a partir de 2016 – quando foi instituída a política de Preço de Paridade de Importação (PPI) – causou crises frequentes como greves de caminhoneiros e maior impacto dos combustíveis na inflação.
Mas para Bercovici, não se trata de discutir como a União emprega os dividendos que recebe da Petrobras. O problema, argumenta ele, é que esse dinheiro está indo em excesso para pagamento de dividendos.
A Petrobras defende que o cenário é o oposto e que a sua política atual de gestão possibilitou uma expansão dos investimentos. “A companhia reduziu seu endividamento para redirecionar recursos de juros para investimentos. Isso permitiu aumentar em 24% o investimento previsto em relação ao plano anterior: serão US$ 68 bilhões nos próximos cinco anos”, informou acompanhia em nota enviada ao
Valor. “Não há qualquer contradição entre a execução de robustos investimentos e o pagamento de dividendos”, adicionou.
A estatal destaca que o pagamento de dividendos é obrigatório em caso de lucro para qualquer empresa de capital aberto, conforme prevê a lei 6.404/76, das Sociedades Anônimas. “Trata-se de um recurso que pertence aos acionistas e, no caso da Petrobras, a maior parte sempre retorna à sociedade brasileira, incluindo osmais de 700 mil acionistas brasileiros.”
Há dez anos, a empresa pagou R$ 3 bilhões em dividendos para o grupo de controle, composto por União, BNDES, BNDESPar, Fundo de Participação Social e Caixa Econômica Federal. Em 2013, o montante caiu para R$ 2,5 bilhões e subiu para R$ 4 bilhões em 2014. Nos três anos seguintes, não houve pagamento de dividendos. Em2018, eles voltaram a ser pagos, mas numa cifra menor: R$ 1,2 bilhão. Em 2019 e 2020, o montante pago ao grupo controlador não chegou aos R$ 3 bilhões. E, finalmente, em 2021 – ano do lucro recorde da empresa -, o total em dividendos pagos à União e aos demais entes controladores deu um salto substancial, atingindo a marca de R$ 27,1 bilhões.