Marcos Lisboa: “Não deveria haver come-cotas em nenhum tipo de fundo”

Menos interessado em números imediatos, economista tem uma visão negativa sobre a economia

Economista Marcos Lisboa. Foto: Divulgação Insper
Economista Marcos Lisboa. Foto: Divulgação Insper

O economista Marcos Lisboa tem uma visão da economia apartada dos números imediatos. Ele está menos interessado em quanto o país vai crescer neste ano ou qual será a taxa Selic no fim do atual ciclo de cortes. Ele tenta enxergar o quadro amplo para entender porque o Brasil viveu 14 anos de queda de renda per capita nos últimos quarenta anos.

Segundo o Ph.D em economia pela universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, esses números superam o de países ricos e emergentes.

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Olhando o quadro total, entre o imediato do crescimento e o futuro, ele sentencia: “Agora, olhando os próximos anos, você vê uma economia crescendo de maneira sustentável? Não.”

Nesta entrevista exclusiva para a Inteligência Financeira, o economista fala também sobre a recente tributação das offshores. O projeto, aprovado no fim de outubro, indica a taxação dos fundos de alta renda – tanto os exclusivos quanto os offshore – mantidos no exterior.

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Olhando para o assunto, o economista faz críticas sobretudo ao come-cotas, que segundo ele, não deveria existir em nenhum tipo de fundo. “O problema é quando essa tributação é distorcida, como acontece com o come-cotas. Não deveria para mim haver come-cotas em nenhum tipo de fundo.”

Marcos Lisboa também fala, claro, sobre o futuro. E se mostra preocupado. “Eu fico preocupado com uma falta de agenda. A gente tem visto pouco. Qual é a agenda da saúde? Qual é a agenda da educação? Talvez tenha alguma coisa acontecendo em infraestrutura, tem sinais que na parte de infraestrurura tem uma agenda que se for posta de pé vai ser muito importante, mas eu sinto falta de uma agenda pro país.”

Confira os principais trechos da entrevista:

O senhor disse recentemente que o come-cotas, ou a tributação anual das offshores, tem uma regra que se a gente simplificar cria outros problemas. Eu queria que o senhor começasse falando quais problemas o senhor enxerga nessa lei?

Você quer resolver no come-cotas a possibilidade dos investidores terem ganhos anuais e não serem tributados por esses ganhos. O pessoal chama do diferimento da tributação, a tributação só se daria no resgate. Esse é um ponto polêmico entre os economistas, tem muito trabalho que indica que isso é bom para o país, para a economia, porque ajuda no investimento, mas tudo bem.

Outras pessoas discordam porque dizem que só vai tributar quando a pessoa sacar o dinheiro do fundo. Tudo bem, é legítimo. A questão é como é que você faz a tributação desses ganhos, como é que você calcula.

Se eu sou uma pessoa física, se eu sou uma empresa, eu periodicamente analiso quanto eu ganhei naquele período, os recursos que entraram adicionais, e eu tributo esses recursos. Só que o come-cotas é diferente disso. O come-cotas tributa também a variação patrimonial, seja a valorização das ações, seja mudanças na taxa de câmbio e você compensa isso com muita dificuldade depois.

Então, se você quer evitar o diferimento da tributação do fundo tem outras maneiras de você tributar sem gerar essa distorção com a tributação da variação patrimonial, que é um ganho não realizado, que é um ganho que não ocorreu, pode não se realizar no fim. A ação pode subir, depois cai, o câmbio sobe, depois desce, mas tributar também esse lado gera essa distorção.

Recentemente publicamos uma matéria com analistas enxergando que houve, claro, um ganho do governo com essa taxação, no sentido de que o Haddad conseguiu um passo importante para aumentar a arrecadação, mas também, gestores entrevistados, veem brechas no projeto atual. O senhor enxerga alguma brecha nesse projeto?

Quando se cria essas distorções, as pessoas reagem em incentivos. Quando você cria uma regra de tributação com esse tipo de distorção, o mercado vai reagir, os investidores vão reagir. Eles vão mudar algum tipo de investimento que fazem, etc.

Eu acho que aumentar a arrecadação é legítimo, pode aumentar alíquota de imposto, acho que é uma discussão totalmente legítima e nós economistas não temos muito a falar sobre isso, é uma escolha da sociedade quanto vai tributar da renda das pessoas.

O problema é quando essa tributação é distorcida, como acontece com o come-cotas. Não deveria para mim haver come-cotas em nenhum tipo de fundo. O problema que eu vejo, olhando pela atual agenda do governo, que é uma agenda antiga da Receita, não tem novidade nenhuma, é a agenda da Receita de 25 anos, é que é uma tentativa de aumentar a arrecadação de uma forma desorganizada e muito buscando brechas e tentando tributar o passado.

A gente tem uma legislação tributária no Brasil incrivelmente caótica e tecnicamente muito mal desenhada, repleta de distorções. Obviamente as empresas se valem da norma da lei… a lei diz isso, tem várias leis com artigos específicos, vou usar a que é mais favorável.

E aí o fisco reage e diz: da maneira como você usou a lei eu acho que não está legal porque tem outras coisas a serem consideradas, que não estão na lei, mas que eu acho que devem ser consideradas. Isso gera esse contencioso imenso entre o Fisco e os contribuintes.

Eu acho que consertar a legislação é um passo importante, tenho defendido fortemente a reforma do IVA (Imposto sobre Valor Agregado), dos impostos indiretos, exatamente para reduzir essas distorções. Infelizmente o projeto que saiu da Câmara com algumas distorções saiu do Senado com uma quantidade de distorções preocupantes. Mas então eu defendo essa agenda.

O presidente Lula disse na última sexta-feira (dia 27/10) ser muito difícil o país contar com déficit zero no ano que vem. Mas o Haddad continua perseguindo a trilha de que é possível e reafirmou isso essa semana (semana passada). Qual a opinião do senhor a respeito?

O ideal seria não ter tido o aumento de despesas obrigatórias que tivemos. No fim do ano passado, eu escrevi sobre isso. Não precisava ter aquele aumento, daquela PEC da Transição tão exagerada, que ia dar problemas no futuro para por exemplo financiar o Bolsa Família.

Mas, enfim, o governo de transição preferiu ter esse aumento exagerado das despesas. Aí você cria um problema porque você precisa arrumar receita. Mas se vai arrumar receita, arruma de maneira organizada, não com decisões de Carf.

Eu acho que é um tribunal que deveria ser extinto. Deveria ter para temas tributários um tribunal independente, como funciona o Cade, para julgar segundo a lei. A gente tem um problema tributário no Brasil grave, a meu ver, que é com frequência decisões de auditores fiscais incrivelmente criativas.

É claro que tem que combater a sonegação, mas nesses grandes casos a gente não está falando de sonegação, a gente está falando de interpretações da lei ou de aspectos subsidiários que não estão na lei, que são utilizados com frequência.

O próprio Carf, ele vai mudando de decisão a decisão. Então, o que eu acho é, deveria ser criado um tribunal independente, um Cade, que julga temas de concorrência, com mandato, com pessoas independentes, que não estão vinculados à Receita, que não estão vinculados com contribuintes para julgar os casos com isenção e verificar: olha, o que a lei diz.

E se a gente acha que a lei está errada, muda-se a lei daqui para frente. Então, voltando um ponto. O que eu acho é: do ponto de vista fiscal, o que é necessário é garantir a sustentabilidade da dívida. O superávit primário é um instrumento para mensurar isso, para mensurar se as receitas obtidas são consistentes com as despesas ao longo do tempo e como isso impacta a evolução da dívida. Agora, num país em que as despesas são obrigatórias, você deveria considerar apenas as receitas recorrentes.

Queria a opinião do senhor a respeito de dois assuntos. Qual a previsão de crescimento do PIB para este ano? E queria que o senhor falasse sobre a taxa terminal da Selic no fim desse ciclo.

Eu não faço essas previsões de números de curto prazo. Tem alguns economistas que fazem isso muito bem, mas a minha preocupação é sempre com a tendência de crescimento de longo prazo.

O Brasil é um país que tem anos bons, você pega os 40 anos entre 80 e 2019, antes da pandemia, teve 26 anos bons de crescimento, com uma média de 2,8% de crescimento da renda por habitantes, mas o Brasil teve 14 anos de queda da renda per capita, em muitos casos, bastante elevada.

O relevante para entender o Brasil é olhar esse quadro do longo prazo, por que é que a gente tem tanta crise? País rico, nesse mesmo período, de 80 a 2019, eles tiveram três, quatro, seis, sete vezes queda de renda por habitante. O Brasil teve 14.

Os países emergentes tiveram comportamento assemelhado o dos países ricos a menos que nos anos bons eles cresceram bem mais, aí bem mais que o Brasil. Então, a questão é porque o Brasil cresce menos que os emergentes? Por que é que a gente tem tantas crises? E crises tão frequentes? E crises tão severas? É isso que o Brasil destoa.

E a tendência no Brasil não é boa, basta olhar os últimos quarenta anos. A gente é um país que na média, entre os anos razoavelmente bons e os anos ruins, a gente tem um desempenho muito pior que o dos países ricos e ainda pior do que os demais países emergentes. E essa é a minha preocupação.

Eu acho que a economia teve um começo de ano aquecido e aí acho que a hipótese mais plausível é que teve um grande impulso fiscal e que colaborou com isso um cenário, um ambiente externo melhor do que se esperava no fim do ano passado.

Você tem o macronegócio que ainda vai muito bem, muito bem, continua crescendo a sua produtividade, teve uma recuperação de serviços, mas começa a ter sinais de uma economia que está desacelerando e que vai desacelerar no fim do ano.

Então, o número final vai depender muito do carrego, tem um carrego estatístico do ano passado porque você está olhando média contra média, no fim do ano a economia estava crescendo, teve um primeiro semestre bastante razoável e agora sinais de que está arrefecendo o crescimento, que é natural.

Agora, olhando os próximos anos, você vê uma economia crescendo de maneira sustentável? Não.

Eu acho que a gente ainda sente os efeitos das boas reformas que ocorreram no governo (Michel) Temer e no começo do governo anterior. Teve a previdência, teve a reforma trabalhista, é só olhar os dados do mercado de trabalho que são impressionantes.

A produtividade do agronegócio continua crescendo, mas outras atividades estão com muita dificuldade. Você tem famílias endividadas, você tem uma série de dificuldades em infraestrutura.  Você não vê uma agenda de investimentos em infraestrutura ainda organizada, vamos ver se esse quadro muda, pelo menos em algumas áreas, tem sinais de que talvez mude.

Mas não vejo o Brasil com grande crescimento. Teve boas reformas no governo Temer, no ano seguinte ao governo Temer, mas depois você teve vários retrocessos institucionais, tem PEC Kamikaze, PEC dos Precatórios, proteção para semicondutores, foram dezenas de medidas, dezenas pelo menos, mais de quarenta medidas em dois anos de retrocessos institucionais. Isso prejudica a produtividade e prejudica o crescimento.

Queria que o senhor fizesse um balanço da gestão do Fernando Haddad até o momento?

Eu não falo de pessoas, olhando a agenda econômica, eu acho uma agenda muito concentrada no fortalecimento dessa estratégia usual da Receita Federal, de criar esses mecanismos para aumentar a arrecadação, que é o que me preocupa porque isso é parte da desordem institucional brasileira.

Eu acho que a reforma muito boa conduzida pelo Bernard Appy é do IVA, uma pena que ela está sendo tão desfigurada no Senado, mas é uma reforma muito importante para o país.

A reforma é muito melhor do que está aí, nosso sistema tributário atual é disfuncional, com regras, procedimentos que prejudicam imensamente o crescimento econômico e a produtividade. Mas a reforma, que oportunidade perdida de fazer uma boa reforma. Vamos fazer uma reforma bacana, mas que preserva as desigualdades e distorções. Poderia ser muito melhor.

Acho que é um avanço a equipe econômica reconhecer a necessidade de um ajuste fiscal, é um grande avanço, mas esta forma como está sendo feito o ajuste fiscal, ela não é sustentável e ela cria distorções. Então, eu preferia que tivesse uma agenda mais assemelhada ao que a gente viu na agenda do IVA.

Eu ia perguntar do governo Lula, mas o senhor já disse que não responde individualmente ou quer fazer algum comentário sobre a gestão até o momento? A gente está perto dos balanços de um ano…

Eu gosto mais das ideias, essa coisa de personalizar é ruim. Eu fico preocupado com uma falta de agenda. A gente tem visto pouco. Qual é a agenda da saúde? Qual é a agenda da educação? Talvez tenha alguma coisa acontecendo em infraestrutura, tem sinais que na parte de infraestrurura tem uma agenda que se for posta de pé vai ser muito importante, mas eu sinto falta de uma agenda pro país.

E eu fico muito preocupado quando eu vejo uma série de medidas de retrocesso que são aprovadas no Congresso, isso realmente tem me preocupado bastante, tenho escrito sobre isso, caso da reforma tributária, por exemplo, no Senado, mas não só aí.

Isso não vem de agora. Nos últimos três anos a gente tem imensos retrocessos na agenda institucional de favorecimento de setores, a gente não consegue tratar da questão das emendas parlamentares, continua, o pouco do orçamento livre que o governo tem, continua sendo cooptado para emendas paroquiais, para atender interesses locais sem nenhuma coordenação de política pública, sem nenhuma avaliação de impacto, sem nenhuma avaliação de eficiência.

Então, os recursos acabam sendo dragados por interesses paroquiais sem um compromisso com a qualidade de vida das pessoas. Política pública deveria estar comprometida em criar regras eficientes, regras que induzam o investimento, o crescimento econômico, cuidando das famílias vulneráveis e melhorando o resultado na vida das pessoas.

Por exemplo, metas em educação para melhorar o aprendizado dos estudantes, a gente não tem isso no Brasil. Você não consegue avançar com a agenda do saneamento, pelo contrário, ameaçou-se retroceder na agenda do saneamento . O Brasil, e aí não estou falando de governo A, B ou C, a gente continua incrivelmente capturado por grupos organizados que se apropiam do Estado para seu benefício localizado em detrimento do bem comum.

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