Acesso ruim a trabalho e educação dificultam ascensão dos negros
Pesquisa mostra que diferença marca ponto de partida em relação a não negros e culmina em discriminação salarial
Pretos e pardos no Brasil são cerca de 56% da população brasileira, mas possuem os menores índices de acesso à educação e ao mercado de trabalho. Enquanto o acesso à escola e universidade é dificultado por condições de vida, o universo laboral é marcado por guetos e discrepâncias salariais em relação aos brancos, segundo estudo do Banco Mundial.
A pesquisa, feita em parceria com o Afro-Cebrap e o Instituto de Referência Negra Peregum, mostra que as desigualdades entre negros e brancos são acentuadas por três canais principais: educação, segregação ocupacional, e discriminação e diferenças de salários.
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Na área da educação, o acesso e “a qualidade contribuem para que a população negra seja incorporada em empregos de baixa qualificação, com vínculos empregatícios frágeis e pouca remuneração”, diz o estudo, que aborda dados de março a junho de 2021 e foi concluído no início deste mês.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua, cerca de um terço da população na faixa etária entre 18 e 29 anos não estuda nem trabalha. O fenômeno “nem nem” atinge mais mulheres negras e homens negros do que mulher brancas e homens brancos.
A pesquisa ressalta que o comprometimento com o estudo como justificativa para não trabalhar é mais comum entre brancos.
A advogada Bianca Lopes, de 23 anos, foi exceção. Negra e nascida em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, ficou sem trabalhar até entrar em direito da Universidade Mackenzie e conseguir estágio.
“O principal desafio é a educação. Apesar de a sociedade ser formada em sua maioria por pessoas negras, a educação sempre é negligenciada para nós. E isso nos afeta no mercado de trabalho”, diz.
Bianca estudou no Etec de Embu das Artes e depois cursou Mackenzie pelo Prouni. “A nossa educação é sucateada e, quanto mais a gente procura, mais as vagas vão se afunilando”, diz.
“Tinha uma vaga para mim, fiz Mackenzie e curso de língua. E minha mãe pode pagar minhas contas até eu começar a trabalhar.” Apesar do privilégio, ela conta que o período mais difícil foi quando estava na faculdade e procurava emprego.
“Para mim, já era difícil estar em uma universidade que eu não poderia pagar sozinha. Quando entrei, vi que estava disputando o mercado com pessoas que haviam feito intercâmbio, falavam outra língua. E era mais crua do que os outros por uma questão de falta de oportunidade”, diz.
“Me sentia em desvantagem. Apesar de ter excelentes notas na faculdade e fazer pesquisa, não tinha experiência internacional e ainda estava começando a fazer inglês. Por um tempo, não conseguia passar nas entrevistas porque inglês é básico, mas eu não tinha.”
Começou a estagiar no início do terceiro ano do curso de direito no escritório Mattos Filho, onde hoje advoga na área tributária. Ela observa que passou a fazer parte de um ambiente majoritariamente branco. Nos processos seletivos, raramente era entrevistada por alguém negro, tampouco tinha concorrentes pretos ou pardos.
Um segundo aspecto que o estudo ressalta como perpetuador das desigualdades é o que classificou como “segregação ocupacional” ou “guetos ocupacionais”, nos quais homens brancos, homens negros, mulheres brancas e mulheres negras ocupam nichos específicos no mercado de trabalho.
Entre profissionais, proprietários e empregadores há maior representatividade de brancos e brancas. Nas ocupações manuais, por sua vez, há maior concentração de negros e negras.
Dados da Pnad mostram que mais de 60% dos trabalhadores manuais são negros e mais de 60% dos profissionais e empregadores são brancos. Enquanto mais de 70% dos homens brancos com ensino superior são profissionais, proprietários ou empregadores, 47,6% das mulheres negras com ensino superior exercem ocupações classificadas como trabalhadores não manuais, técnicos e supervisores.
“Ou seja, a formação superior das mulheres negras não é suficiente para que elas exerçam as profissões para as quais se prepararam”, ressalta o texto.
Entre aqueles que estão se esforçando para conseguir emprego fixo, o desemprego atinge mais negros e negras. No caso das mulheres negras, as desigualdades de raça e de gênero se sobrepõem, resultando nas maiores taxas de inatividade (47,3%) e de desemprego (8,9%).
Quando se analisam jovens de 18 a 29 anos, observa-se que mais de um terço das mulheres negras dessa faixa etária (35,6%) estão fora da força de trabalho.
“Essa é uma etapa crucial de transição de jovens que acabaram de sair da idade escolar e estão no início de suas trajetórias de trabalho. Esse momento em particular tem grande potencial para impactar suas carreiras futuras positiva ou negativamente”, diz o estudo.
Claire Eliscar, de 18 anos, deixou há poucas semanas seu primeiro emprego com carteira assinada porque não conseguia pagar a condução até o trabalho, na avenida Interlagos. Ela mora com a mãe e quatro dos cinco irmãos perto da avenida Cupecê, em Interlagos.
Estava havia um mês e meio trabalhando como operadora de telemarketing de um curso de inglês e informática. Ganharia um fixo de R$ 400 e o restante viria com comissão por metas alcançadas.
“Mas saí porque eles não estavam pagando meu transporte. Eu estava tendo de tirar do meu bolso. E, como é meu primeiro emprego e eu ainda não havia recebido, não tinha condições”, afirma.
Antes desse emprego, Claire havia feito bicos de babá e ajudado a mãe, que é cozinheira e já trabalhou como faxineira.
Claire está no último ano do ensino médio na Escola Estadual México e ainda não decidiu se cursará psicologia ou direito. Até lá, vai espalhando currículo.
“Mas não é fácil. Tem racismo”, afirma. “Uma vez deixei meu currículo em uma loja de cosmésticos no shopping Interlagos, que dizia estar contratando. Me olharam diferente, cochicharam. Depois disseram que não havia vaga para mim.”
“Uma das principais conclusões desse estudo é que, mesmo quando a população negra supera os muitos obstáculos educacionais, ela tem retornos mais baixos do investimento em educação no mercado de trabalho. Esse cenário é apontado tanto pelos dados quantitativos quanto qualitativos”, afirma Vanessa Nascimento, presidente e diretora-executiva do Instituto de Referência Negra Peregum. “Entre os trabalhadores informais, 60% são negros e mais de um terço (35%) são homens negros.”
Vanessa lembra ainda que negros ocupam apenas 6,3% dos níveis de gerência das empresas, 4,7% dos quadros executivos e 4,9% dos representantes dos conselhos de administração. Os dados são do Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 maiores empresas no Brasil, do Instituto Ethos e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
O estudo do Banco Mundial, do Afro-Cebrap e do Instituto de Referência Negra Peregum destaca como terceiro ponto para discrepâncias a discriminação e as diferenças salariais entre indivíduos igualmente escolarizados e com ocupações semelhantes.
“Entre pessoas com a mesma escolarização e o mesmo status ocupacional, homens negros, mulheres brancas e mulheres negras não auferem rendimento próximo aos dos homens brancos com escolarização e ocupação semelhantes”, diz o estudo. Homens brancos profissionais e proprietários recebem, em média, R$ 8.458, e as mulheres negras, profissionais e proprietárias recebem R$ 3.966, 54% menos.
Para reverter isso, são necessárias ações coordenadas do setor privado que complementem políticas afirmativas do Estado, diz Viviane Soranso, coordenadora do programa Raça e Gênero da Fundação Tide Setubal.
“Temos leis que já garantem ações afirmativas dentro dos espaços empresarial, como a lei 12.288/10, que prevê que o poder público promova ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, por meio de igualdade nas contratações do setor público e incentivo a medidas similares em organizações privadas”, lembra.
“[Mas] as empresas [também] precisam olhar para os talentos que estão presentes dentro de suas instituições. Se faz necessário ofertar oportunidades para que se desenvolvam e cresçam. Olhem para dentro que encontrarão grandes potências.”
Consumidor nota quando inclusão é apenas marketing
Mais da metade dos consumidores (56%) prefere comprar produtos de empresas que apoiam a pauta da inclusão, mas um em cada três deles acredita que as questões raciais estão sendo usada apenas como marketing. O dado, que consta em uma pesquisa do Movimento Black Money, revela que o brasileiro está atento ao chamado “diversity washing”, prática de promover uma ‘maquiagem’ de inclusão para cumprimento da exigências da agenda ESG.
Para de fato ser “emancipatória”, a inclusão racial nas empresas precisa ganhar escala nas corporações, diz Nina Silva, CEO do Movimento Black Money – e colunista da Inteligência Financeira. Formada em administração pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com especialização em finanças e tecnologia, Nina Silva, 42 anos, diz que muitas empresas têm feito intensa divulgação de quadros de liderança ocupados por pessoas negras de forma excepcional, mas não promovem mudanças nas suas políticas de inclusão.
Em 2013, Nina trabalhava como gestora de projetos de tecnologia para multinacionais, quando foi acometida por uma crise de esgotamento mental. “Não era apenas a elevada carga de trabalho, mas o sentimento de que eu estava corroborando um sistema que falsamente me colocava no poder”.
Embora fosse líder de equipes com até 60 pessoas, Nina – hoje defensora da transparência na política salarial nas empresas – recebia menos que homens brancos que ela mesma recrutava. Além disso, não conseguia contratar pessoas negras por conta dos filtros das companhias. “A pessoa tinha que ter o inglês fluente, ser formada em universidades renomadas ou caras, o que não é a realidade da maioria dos negros no Brasil.”
Com margem de erro de 2,1 pontos percentuais, o levantamento, realizado em setembro com 2 mil negros e brancos, aponta que 23% das pessoas negras acreditam que a sua raça já dificultou a sua inserção no mercado de trabalho. Quando já inseridos nas empresas, 40% relatam já ter presenciado atos discriminatórios e 65% acham que a ainda “falta muito” para que as corporações acolham os profissionais afrodescendentes.
Passado o auge da crise emocional, Nina encontrou, cinco anos atrás, um novo rumo para a carreira quando conheceu Alan Soares, cofundador do Movimento Black Money. A iniciativa é composta por um marketplace com 7,5 mil empreendedores negros e uma fintech de impacto social, o D’Black Bank, que concede crédito a juros mais baixos para esses empresários. Considerada a mulher mais disruptiva do mundo pela Woman in Tech Global Awards no ano passado, Nina atua ainda como consultora, conselheira em empresas, além de mentora de carreiras em tecnologia.
Para Nina, os programas de trainees exclusivos para pessoas negras, como o do Magazine Luiza e da Bayer, são iniciativas importantes para a sociedade e para as corporações. “Estamos em um momento em que cada um tem que fazer a sua parte. As empresas que têm mais diversidade em seus quadros de funcionários obtém ganhos de performance.”
O programa de trainee do Magalu foi questionado na Justiça por um defensor público por supostamente estar fazendo “marketing de lacração” e utilizando “critérios discriminatórios”. No início do mês, a Justiça do Trabalho considerou a ação improcedente.
Nascida em uma família humilde de São Gonçalo (RJ), Nina não acredita que a meritocracia seja responsável pelo seu sucesso profissional. Ela credita sua trajetória a uma “brecha” no sistema encontrada pela família, por meio do estímulo ao estudo. Nina e a irmã são a primeira geração da família com diploma universitário.
O caminho para inclusão também precisa passar pela responsabilidade das empresas em formar mão de obra. No setor de tecnologia, estima-se que no Brasil 30% das vagas abertas não são preenchidas, quase sempre com a justificativa de que não são encontrados profissionais com as competências necessárias. “As empresas podem fazer programas de qualificação e selecionar pessoas durante o processo”, afirmou Nina ao Valor, um pouco antes palestra sobre empreendedorismo negro do Instituto JCPM, no Recife, ontem.
O Estado também tem seu o papel para acelerar as mudanças. Nina anunciou voto no ex-presidente Lula por perceber retrocessos no debate das questões raciais durante o governo de Jair Bolsonaro. Reflexo disso é que apenas 38% dos entrevistados negros sentem que estão sendo mais representados na esfera pública e política, enquanto 42% avaliam que não houve mudança significativa nos últimos cinco anos. O restante (20%) percebe que a representação negra nesses setores encolheu no período.
Nina se reuniu com equipe de Lula durante a campanha, mas afirma que não é petista e não se constrangeria em ir para a oposição assumindo uma postura de cobrança. A primeira delas será na representação dos negros nos cargos. “Não podemos ficar restritos às pastas de direitos humanos, mulheres. Temos que estar também na economia, por exemplo”.
Para a executiva, a Lei de Cotas deve ser uma política estrutural, que não pode ser ameaçada. A revisão das regras é uma possibilidade prevista na legislação atual.
Ainda na esfera pública, Nina é defensora de inclusão da educação financeira na grade curricular do Ensino Médio, uma pauta que encontra resistência em algumas alas da esquerda. Para ela, informações sobre controle de orçamento doméstico e investimento precisam chegar às escolas públicas. “Não é promoção do capitalismo, mas do mundo como ele é”, diz ela, que costuma dar dicas de finanças pessoais nas suas redes sociais.
Diversidade racial nas empresas perdeu força, aponta índice
Políticas favoráveis à presença de mais funcionários negros em empresas que operam no Brasil parecem ter perdido um pouco de força neste ano.
Um levantamento feito pela Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial mostrou um desempenho pior das empresas em relação ao ano passado em quase todos os quesitos avaliados.
A Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial reúne 67 entidades e empresas e foi criada pela Faculdade Zumbi dos Palmares e a ONG Afrobrás, duas instituições tradicionais de São Paulo que atuam na defesa de direitos da população negra e na pauta antirracista.
Neste ano, o Índice de Equidade Racial nas Empresas (IERE) reuniu informações de 48 empresas. Na edição de 2021, 42 empresas participaram.
“Os resultados mostram que a gente está mais ou menos na mesma página há uns 30 anos”, diz Raphael Vicente, diretor-geral da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial. Ele se refere à presença de homens e mulheres negros em posições médias e em posições de comando nas empresas e em seus conselhos, a políticas de contratação e capacitação, entre outras medidas voltadas a ampliar a diversidade racial nas companhias privadas.
Vicente aponta avanços, especialmente em empresas de maior porte. Mas lembra que um retrato comum ainda inclui companhias que muitas vezes aparecem entre as melhores para se trabalhar e onde não há, por exemplo, uma mulher negra sequer em cargo de destaque. “Há uma dificuldade em romper esse cenário.”
Ele nota que as ações afirmativas nas universidades públicas e no serviço público começaram antes e mostram hoje resultados muito mais efetivos do que as políticas adotadas pelos empregadores privados.
O IERE deste ano computou informações sobre a participação de funcionários em indústria, empresas de serviços financeiros, consultorias, varejo, entre outros setores. Das 48 empresas pesquisadas, 38 delas possuem mais de mil funcionários.
Os organizadores destacam que existem limitações nas comparações entre as edições de 2022 e de 2021. É que alguns temas analisados neste ano passaram a ter mais peso e além disso houve mudança de perfil de algumas das empresas participantes.
Para permitir, no entanto, um paralelo entre as duas edições do índice, os organizadores fizeram ponderações nas médias das notas dos seis temas analisados no ano passado levando em conta as mudanças da pesquisa deste ano.
E a conclusão é que a média geral do índice caiu de 4,30 em 2021 para 4,02 em 2022. Todos os quesitos pioraram, exceto o que diz respeito ao recrutamento de novos funcionários negros.
Os outros quesitos avaliados foram: recenseamento empresarial que considere o corte racial dos trabalhadores; conscientização sobre o valor da equidade racial; capacitação; ascensão de funcionários negros; e publicidade e engajamento à pauta da equidade racial.
Na apresentação do índice, a Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial afirma que: “Quanto mais claro for para as empresas o que tem sido implementado pelo restante do mercado e o que são, de fato, boas práticas em termos de ações afirmativas, bem como quanto mais evidente for o ganho econômico-financeiro da diversidade, mais efetivo será o combate ao racismo estrutural”.
Por Marsílea Gombata, Marina Falcão e Marcos de Moura e Souza