A história de Carla Madeira, a publicitária que virou um dos maiores fenômenos da literatura brasileira
Com livros que abordam o mundo feminino, a escritora mineira best-seller agora terá obra transposta para séries
Uma mulher transformada por uma tragédia resultante dos ciúmes doentios do marido. Uma prostituta dona de uma natureza fálica, que quer controlar o desejo do outro. Uma psicanalista idosa lidando com a falta de memória e problemas físicos. Uma jornalista arrebatada pela dor do luto. Uma mulher devastada e que em um momento de descontrole abandona o filho de cinco anos na calçada. Mulheres diversas povoam a mente da publicitária e escritora mineira Carla Madeira, autora dos livros “Tudo é rio”, “A natureza da mordida” e “Véspera”, todos publicados pelo Grupo Editorial Record.
Carla Madeira é uma das autoras brasileiras mais bem-sucedidas da atualidade, compartilhando o topo das listas com Itamar Vieira Junior, autor do best-seller “Torto arado”. Em 2022, “Tudo é rio” chegou a 147 mil cópias. Na lista Nielsen-PublishNews de livros de ficção nacional mais recente, “Tudo é rio” ainda lidera o ranking. Seus outros dois livros, “A natureza da mordida” e “Véspera”, também figuram entre as obras nacionais mais lidas, na quarta e nona colocações, respectivamente.
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Madeira conta um pouco da sua história durante um encontro na Belô Cafeteria e Doceria, na Savassi, em Belo Horizonte, para um café da tarde. Às 16h de uma tarde quente, a escritora pede uma torrada com avocado temperado e ovo estrelado, água com gás e um “shot” de limão. Ela pede algumas vezes ao gerente do local para aumentar um pouco o ar-condicionado por causa do calor, sem muito sucesso.
A escritora está empolgada com a venda dos direitos autorais dos livros “Tudo é rio” e “Véspera” para a produtora Boutique Filmes, responsável pela produção do documentário “Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime” (Netflix); da série “Rota 66 – A Polícia que Mata” (Globoplay) e da minissérie “PCC: Poder Secreto” (HBO Max), entre outras. Antes disso, chegou a ter conversas com o diretor e ator Murilo Benício para produzir uma série baseada em “Tudo é rio”. “Depois de muitas escutas e de participar de muitos clubes de livros, eu vi que gostaria que a produção fosse dirigida por uma mulher. Mas ainda não sei o que vai ser feito”, afirma.
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A escritora conta que não era sua intenção inicial abordar questões relacionadas ao feminino, embora o tema permeie as suas obras. “Hoje eu vejo muitas questões que atravessam os três livros. A questão da maternidade, a questão da violência de gênero, dos conflitos familiares, da sexualidade feminina. O quanto o núcleo familiar é matriz das nossas potências e das nossas limitações”, afirma Madeira.
Em “Tudo é rio”, Lucy, a prostituta mais requisitada da cidade, vive um triângulo amoroso com o casal Dalva e Venâncio, que tem a vida transformada por uma tragédia. O best-seller foi um dos escolhidos para o Rodas de Leitura, um programa realizado em oito alas de unidades prisionais do estado de Minas Gerais, que estimula a leitura nos presídios. Os detentos produzem resenhas sobre os livros lidos e podem ter uma remição de pena de um dia para cada obra lida e atividade realizada.
Carla Madeira participou de rodas de conversa com os presidiários que leram a obra. “Fiquei impressionada, como seria dar um livro com aquele erotismo todo para um presidiário ler em uma cadeia. Cheguei lá e isso nem de longe foi a questão”, conta a escritora. No presídio de Caeté, na região metropolitana de Belo Horizonte, a questão que mais chamou a atenção dos presos foi o perdão. “Um preso me falou assim: ‘depois que eu li o livro eu parei de odiar’. Fiquei emocionada. Um preso falou: ‘agora entendo que isso que eu estou vivendo vai passar’”, diz.
Já em um presídio feminino, a sexualidade foi o assunto mais abordado. “A questão da sexualidade da Lucy apareceu de um jeito muito bonito, com alegria. Algumas relataram que sentiram muito tesão. Parece que [a obra] criou a possibilidade de que elas conversassem sobre isso. A Lucy foi alguém que sentiu a possibilidade de sentir alegria. Mesmo vivendo uma tragédia, que é a separação da vida da sociedade, esse corpo ainda é um corpo que pode sentir”, afirma.
A autora diz que, conscientemente, não pensou escrever sobre violência doméstica, tema que também aparece na obra. “Foi uma coisa que veio à tona”, conta. A autora lembra que teve um tio que batia na esposa. Em uma ocasião, ela estava na casa dos tios quando começou uma briga. “Lembro de mim à noite, pulando o muro da casa para chamar a minha avó, que morava do lado, para falar o que estava acontecendo. Foi uma coisa que me marcou”, diz. O que a intrigava era o fato de a mulher não deixar o marido, apesar de ter apoio de toda a família do marido para sair de casa. “Comecei a perceber alguns julgamentos do tipo mulher de malandro gosta de apanhar. Só que eu vi o pavor no rosto dela. Eu sabia que não era isso. Acho que essa é uma pergunta que ficou, por que ela não ia embora”, diz Madeira.
Já na obra “Véspera”, a questão da maternidade aparece com mais força. Vedina, esposa de Abel, sofre com o casamento fracassado e com a sobrecarga da maternidade. Em um momento de esgotamento extremo, ela para o carro e abandona o filho de cinco anos na calçada, atitude da qual se arrepende logo em seguida.
Madeira observa que o livro foi lançado quase ao mesmo tempo que saiu o filme “A filha perdida”, adaptação do livro de mesmo nome da escritora italiana Elena Ferrante, e que também trata da maternidade. “Em ‘Véspera’ existe uma discussão sobre a romantização da maternidade. É legal ver que isso está sendo discutido, porque abre possibilidade para um novo olhar para a realidade”, afirma a autora.
A escritora comemora o fato de suas obras levantarem discussões sobre comportamentos e papéis sociais, mas diz que não era seu objetivo original. Uma preocupação central da autora é trabalhar diversos tipos de linguagem. Em “Tudo é rio”, a linguagem é quase poética, definida por Madeira como uma espécie de sinfonia, com ritmo e cadência. Uma influência, talvez, vinda do amor da autora por música.
“É engraçado porque as pessoas me falam que a minha escrita é poética, eu nunca fui uma grande leitora de poesia. Sempre fui mais da prosa. Eu consumia poesia através da música. E a minha relação com a palavra veio muito da música”, diz. Ela acrescenta que considera em suas produções ritmo, métrica e palavra. “Realmente, eu olho palavra por palavra, leio alto, releio muitas vezes para ver se está com ritmo. É o meu gosto”, completa.
A publicitária conta que compõe músicas desde a adolescência, mas hoje não tem coragem de apresentar suas composições em público. A música mais recente, diz, é uma espécie de sofrência, mas a sua preferência é compor canções no estilo MPB. “Tenho uma certa timidez com isso. Talvez uma hora eu crie coragem para apresentar”, afirma.
Nem sempre foi assim. Na adolescência, era obcecada por música popular brasileira e achava que ia ser cantora. Esperava ansiosamente os lançamentos dos discos de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Clube da Esquina. Acompanhava as letras nos encartes. Aprendeu a tocar violão e começou a arriscar composições próprias.
“Comecei a cantar em bar. Cheguei a fazer um show no antigo Cabaré Mineiro [casa de shows e escola de música criada por Wagner Tiso, Cláudio Rocha e Milton Nascimento e fechada em 1992], um show muito legal dirigido pelo Chico Amaral”, conta Madeira, entusiasmada. Ela até chegou a ensaiar com Lelo Zaneti, baixista e vocalista da banda Skank, mas o projeto musical não foi levado adiante. A preocupação sobre o futuro que poderia ter seguindo a carreira na música a fez tomar outro rumo.
Em relação à escrita, Madeira considera que recebeu influências de grandes obras da literatura. Ela destaca “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa; “Alice no país das maravilhas”, de Lewis Carroll; “Os miseráveis”, de Victor Hugo; “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis; “A hora da estrela”, de Clarice Lispector. Em relação a escritores, Madeira diz que o autor que mais a marcou foi Monteiro Lobato. “A noção de que era bom ler, e que não era só a história em si, tinha um jeito de contar história que era muito legal, essa noção eu tive com Monteiro Lobato. Foi um autor que me fez descobrir a literatura”, afirma.
A escritora testa diferentes narrativas nas obras. Saindo da linguagem poética, em “A natureza da mordida” ela escreve nas vozes das duas protagonistas. Uma delas é Biá, uma psicanalista que está perdendo a memória e faz anotações em linguagem psicanalítica sobre suas memórias e seus encontros com Olívia, uma jornalista jovem arrebatada pelo luto. Os capítulos são curtos e intercalam as vozes das personagens. “Para esse livro eu quis uma linguagem bem dentro dos territórios do jornalismo e da psicanálise”, diz Madeira.
A escritora diz que “A natureza da mordida” foi mais trabalhosa porque nos primeiros encontros não é dado ao leitor conhecer as circunstâncias que causaram sofrimento às personagens. Ao longo da obra, o passado das duas é descortinado. “Eu estava escrevendo os encontros, mas não tinha ainda a história. Essa arquitetura foi super trabalhosa. E as anotações de Biá tinham que ter uma certa liberdade de abordagem, porque como eram anotações de uma psicanalista, ela podia pegar o gancho que ela quisesse”, afirma.
No caso de “Véspera”, a intercalação de capítulos foi o maior desafio. A obra trata do casamento fracassado de Vedina com Abel e o abandono do filho. Para cada capítulo que avança no drama da mãe que busca o filho, há um capítulo seguinte sobre o passado, que contextualiza a cena. “Às vezes eu quero que uma coisa aconteça no presente, então tenho que criar as condições de acontecer no passado. E às vezes é o contrário. Foi preciso uma certa engenharia para ir revelando de parte a parte”, diz Madeira.
A autora considera que a pandemia de covid-19 teve impacto na escrita de “Véspera”. Ela diz que tinha antes como ritual sair da agência, voltar de carro para casa, tomar banho, comer com os filhos e depois escrever. Com a pandemia esses rituais se perderam. “Era o mesmo lugar, o mesmo computador, eram meus filhos ali o tempo inteiro, foi muito cansativo”, conta. Em termos profissionais, a publicitária precisou em dez dias colocar quase 90 pessoas trabalhando de casa, sem experiência anterior, sem saber se daria certo.
“Não é que estava trabalhando a distância, estava trabalhando sem nenhuma rede de apoio em nada. Então trabalhar, lavar roupa, cozinhar, arrumar casa, fazer compras, limpar as compras, é que eu comecei a fazer na pandemia”, lembra. Além da nova dinâmica, havia muita insegurança devido ao pouco conhecimento sobre o novo coronavírus. “Você via gente morrendo, gente morrendo. A morte era a pauta do dia. Acho que essa condição de falta de saída, essa angústia, de certa forma atravessa ‘Véspera’”, avalia a escritora.
Para Madeira, a literatura, como toda forma de arte, é um espaço de liberdade. “A literatura não é para ditar regras, não é para acerto social. É um espaço para explorar a condição humana, para investigar toda essa potência que tem a alma”, afirma. A autora diz que quer manter a liberdade para escrever o que quiser em uma próxima obra. Madeira não firmou nenhum compromisso ou meta com a editora Record para escrever outra obra.
Ela diz que tem pensado há alguns meses em algumas situações e já abriu um arquivo para escrever. “Estou testando umas coisas. Mas é um processo. A ‘Natureza’ foram três anos e meio para escrever, a ‘Véspera’ foram três anos.” A escritora diz que quer desacelerar na vida e que planeja ficar menos no dia a dia da Lápis Raro, agência de publicidade sediada na capital mineira, onde trabalha na direção de criação e da qual é sócia, passando a atuar de forma mais estratégica. “Quero cada vez mais ter espaço para a liberdade, tempo da escrita, da arte”, afirma.
Nascida em Belo Horizonte em 1964, Carla Madeira viveu diferentes papéis em sua jornada antes de se tornar escritora profissional. Formada em publicidade, jornalismo e relações públicas, adotou como profissão a publicidade.
Mas antes da comunicação social, a escritora fez vestibular para matemática, sob influência do pai, que é matemático. Madeira passou em primeiro lugar no vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais, em 1981. “Eu tinha muita facilidade com a matemática, mas ela me afastou um pouco da música. Passava dois turnos na universidade lidando com números. Me sentia meio estéril com a coisa da palavra. Comecei a ficar triste”, diz. Depois de dois anos e meio de curso, decidiu largar a graduação.
Prestou um novo vestibular na UFMG, desta vez para comunicação social. Aprovada, fez as habilitações publicidade, jornalismo e relações públicas. “Tomei muito gosto pela publicidade. Ali eu exercitava as linguagens artísticas de música, cinema, literatura”, diz a escritora. Em 1987, fundou com a publicitária Simone Moreira a agência Lápis Raro, uma das maiores agências de publicidade de Belo Horizonte.
Mesmo exercitando ferramentas artísticas, Madeira sentia falta de um trabalho mais autoral. “Comecei a escrever de maneira livre, a fazer um exercício de linguagem. Não sabia se ia virar uma experimentação, um conto. Daí veio aquele narrador que tem um ritmo, um jeito de falar muito cadenciado, muito específico. Comecei gostando disso. E aí fui escrevendo”, conta Madeira sobre o começo da escrita de “Tudo é rio”.
A autora começou escrevendo a história de Francisca, uma das personagens do livro, e paralisou na cena de Venâncio com o filho. A paralisia durou 14 anos. “Eu propus uma situação tão radical e não tinha maturidade para sair dela, para encaminhar a situação”, diz. Nesse intervalo, a escritora teve dois filhos e um segundo casamento. Ao longo dos anos, no entanto, a questão do livro voltava à sua mente. Um dia, ela decidiu abrir o arquivo. “Aí, sim, veio como um jorro. Foram oito meses de escrita visceral, escrevendo todos os dias. João Cabral de Melo Neto falava que o escritor escreve ou para transbordar ou para preencher. ‘Tudo é rio’ foi um transbordamento”, relembra.
Quando terminou, Madeira achou que aquele “transbordamento” tinha se tornado um livro. Ela deu cópias para algumas pessoas lerem e uma amiga sugeriu levar a obra para a editora Quixote+Do. “Na época levei para o Alencar [Perdigão, sócio da editora]. Ele leu e gostou muito e a gente fez uma parceria. Eu arquei com o custo da produção e ele arcou com a distribuição”, diz a autora. O livro foi lançado em 2014. As vendas começaram a crescer com a força do boca a boca, de forma viral. Pessoas que liam recomendavam ou compravam outra cópia para presentear.
Um dos casos curiosos de leitores ávidos é do médico José Salvador Silva, fundador do Hospital Mater Dei (hoje parte da Rede Mater Dei de Saúde). Ele ganhou o livro de uma amiga em 2015. Gostou tanto que comprou mais de cem exemplares para presentear parentes e amigos. As vendas ganharam mais vigor depois que a colunista de “O Globo” Martha Medeiros escreveu sobre a obra, que ela havia ganhado de uma amiga.
Em 2021, quando terminava de escrever “Véspera”, Madeira mudou para a editora Record. “Chegou um ponto que eu senti que precisava de uma estrutura mais robusta de produção e distribuição”, diz. Quando a Record relançou “Tudo é rio”, a obra já ultrapassava 75 mil cópias vendidas. Em seis meses, os exemplares vendidos chegaram a 145 mil. A editora relançou “A natureza da mordida”.
Madeira é mãe de dois filhos: Ana, de 23 anos, que estuda medicina, e João, de 20 anos, estudante de ciência da computação. Ambos moram com ela. “Nos dias livres eu falo assim: João e Ana, obrigada. Porque quando estou escrevendo, eles já me conhecem, fico imersa. Às vezes a gente está almoçando, a Ana fala ‘volta, mãe’. Ela já sabe que eu fico imersa na história”, diz. No fim da conversa, ela pede para o garçom embrulhar a metade do lanche que sobrou no prato. A torrada serviria como jantar para Madeira, que diz estar de dieta.
Por Cibelle Bouças