‘A independência financeira não é um lugar fixo’, diz Ana Leoni
Para a especialista em comportamento financeiro, ser independente financeiramente requer disciplina e ter milhões na conta pode não significar nada sobre o bom uso do dinheiro
Ter vários dígitos na conta bancária e ostentar uma vida milionária nas redes sociais são quesitos vistos, naturalmente, como sinônimos de riqueza. Mas é possível dizer que essas pessoas conquistaram a independência financeira? Segundo Ana Leoni, uma das maiores especialistas em finanças comportamentais no Brasil, essa confusão sobre riqueza e independência financeira é um dos fatores que afasta os brasileiros de poupar e investir dinheiro.
Em entrevista ao íon, a executiva, que trabalhou por 17 anos na alta cúpula da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), falou sobre alguns dos equívocos comuns relacionados ao conceito da independência financeira e desmistificou outros mitos relacionados ao assunto.
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Leia a seguir a entrevista completa com Ana Leoni.
Por que o conceito de independência financeira pode ter tantos significados diferentes?
Primeiramente, acho que existe um estereótipo muito grande dentro do mercado financeiro. Eu sempre digo: você não será rico investindo. Isso é uma distorção do objetivo de investimento que acaba mais afastando as pessoas do ato de investir do que aproximando. Investir não é necessariamente para ficar milionário.
O que vale é muito mais a disciplina do que fazer grandes apostas para chegar à independência financeira. Então, a primeira coisa é que muitos pensam que independência financeira é sinônimo de riqueza. É o que as redes sociais acabam mostrando. Talvez esses milionários que acompanhamos nos feeds da internet sejam realmente independentes financeiramente, mas até nesses casos isso pode ser uma condição provisória.
De forma objetiva, independência financeira é você ter uma renda que, de forma passiva, sustente seu estilo de vida e todas as despesas, seja tendo um trabalho ou não.
O que você diria para quem almeja ter 1 milhão de reais como objetivo final para alcançar a independência financeira?
A capacidade de poupança precisa cobrir todos os gastos dentro da expectativa de cada um. Às vezes, 1 milhão de reais pode ser muito pouco e não ser suficiente, por exemplo. Com essa quantia, vivendo em uma cidade com alto custo de vida, a sua independência financeira pode durar muito pouco.
Esse conceito está muito ligado ao atendimento de expectativas. Quando as pessoas imaginam que os investimentos existem para torná-las ricas, muitos não se veem nesse lugar. Na minha visão, independência financeira está muito mais relacionada com o poder de escolha do que com o poder de compra. Você pode ter dinheiro para comprar várias coisas que você quer, mas, ainda assim, ser muito dependente do seu trabalho. Você tem uma renda e um fluxo suficiente, mas isso não te deu independência.
Você pode ganhar 100 mil reais e gastar esses mesmos 100 mil. Isso significa que você consegue manter seu padrão de vida, mas acaba dependendo muito desse dinheiro para isso.
Qual é o papel das emoções para construir a independência financeira?
Você precisa definir qual é o seu máximo porque muita gente fala no mínimo necessário para ter essa independência. Mas se não soubermos o teto, a gente pode ser independente financeiramente e continuar dependendo emocionalmente da produção de mais renda. Essa pessoa sempre vai precisar de mais e mais e nunca vai chegar satisfeita em um lugar, independentemente do dinheiro que entra.
Uma vez me perguntaram se eu sou independente financeiramente. Eu respondi: ‘hoje, eu sou’. Mas se eu não mantiver a mesma disciplina e diligência com meus gastos e vontade de continuar produzindo alguma renda, talvez amanhã eu não seja mais.
Então a independência financeira não é um lugar fixo. O importante é o quanto você consegue se manter nessa posição de independência.
Existe diferença entre a forma como os mais velhos e os mais jovens encaram a independência financeira?
Eu acho que há uma romantização dessa questão de gerações. Em primeiro lugar, em 1960 a expectativa de vida do brasileiro ao nascer era de 54 anos. A preocupação com o futuro era diferente por conta disso, o contexto econômico era diferente e até o próprio acesso às informações era diferente. A nova geração tem visões e motivações que são da natureza de qualquer jovem. Quando eu tinha 20 anos, eu queria coisas diferentes do que eu quero hoje. Isso faz parte.
Se a gente olha as estatísticas e pega os jovens lá na pesquisa Raio-X da Anbima percebemos que os jovens também estão preocupados em ter uma casa própria algum dia e se aposentar. Então, eu acho que há uma romantização de que o jovem não quer acumular recursos. Até porque os jovens vão envelhecer do mesmo jeito, ter os desafios econômicos da mesma forma que a geração anterior. Há uma glamorização, na minha opinião, de que os jovens querem só experimentar em vez de ter. Mas, eventualmente, eles ficarão doentes, envelhecerão, terão desafios de desemprego, como todas as gerações.
Pela sua experiência, como é possível fomentar mais a ideia de independência financeira no Brasil, se o país tem problemas graves, como fome, inflação alta e alto índice de desemprego?
Como a gente vive numa sociedade muito ampla e muito desigual, ou seja, a base e o topo da pirâmide são muito largos e extensos, há um constrangimento em falar em prosperidade num país tão desigual.
É difícil ter o discurso para alguns de “vem cá, vamos investir seus milhões” a despeito de boa parte da população, que não faz nem as três refeições diárias ou vive na miséria. Mas a gente precisa trazer o assunto de educação e independência financeira à tona porque as estatísticas mostram que muitas pessoas também conseguem, apesar de toda a escassez que precisam administrar, viver com o mínimo de dignidade se tiverem boa informação em mãos.
Não dá pra ter um discurso único num país que tem o tamanho de um continente, com diferenças culturais, diferenças de renda, de estilos de vida, mas a gente precisa falar sobre isso.
Um pouco menos de 25% das pessoas da classe A, no Brasil, não têm uma reserva financeira. Estamos falando de 1/4 da camada social que está no topo da pirâmide que ainda não tem independência financeira, ou seja, essas pessoas produzem renda, mas não vivem do que pouparam para se chamar de independentes.
Por outro lado, se olharmos para a base da pirâmide, quase 17% das classes D e E têm reserva financeira. Apesar do abismo de renda entre os dois lados da pirâmide, a gente tem, a partir desses dados, demanda para ajudar a fomentar mais esses assuntos financeiros.
Você acha que o brasileiro tem uma cultura de poupar menos?
A gente tem, de fato, uma cultura que privilegia muito mais o consumo do que o investimento. Vários fatores influenciam de alguma forma. A nossa estabilidade econômica é muito recente. Tem só 30 anos.
Antes disso, era muito difícil pensar em poupar. O poupar era de outro jeito, comprando imóveis e estocando comida, por exemplo, porque a inflação consumia o seu dinheiro mais rápido do que sua capacidade de poder ganhar. Então, essa memória de poupança nossa é muito recente. Mas não há dúvidas quanto a essa cultura.
Por Leonardo Pinto, jornalista e editor do Feed de Notícias do aplicativo íon. Artigo originalmente publicado no Feed de Notícias do íon Itaú. Para ler este e outros conteúdos, acesse ou baixe o app agora mesmo.