Fair play financeiro no futebol: tema que muitos falam, mas poucos entendem
O modelo está pronto, testado e levaria os clubes brasileiros ao equilíbrio
De tempos em tempos nos deparamos com o tema Fair Play Financeiro sendo debatido na imprensa e pelos torcedores nas redes sociais. Por vezes, também citado por dirigentes, que entendem o conceito ainda menos que a imprensa e os torcedores. E, de tempos em tempos precisamos voltar a este espaço para relembrar qual a ideia por trás do Fair Play Financeiro.
Como funcionam os esportes dos EUA
Antes, uma recorrência irritante, e que mostra o quanto a pessoa que fala não entende patavinas do que está falando: não se compara qualquer ação dos esportes norte-americanos com o futebol como o conhecemos. Nenhuma. É um erro primário.
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Os esportes dos EUA estão em ligas. Por vezes, numa estrutura que não tem rebaixamento. Assim, os clubes podem mudar de sede, cujos donos compram os negócios com viés fiscal. E conseguem benefícios a partir da aquisição e dos prejuízos operacionais.
No final, tanto faz ser primeiro ou último, que o dinheiro da TV estará lá no caixa.
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A lógica e dinâmica do negócio são completamente diferentes do futebol que nós conhecemos. Mesmo os contratos de direitos de transmissão precisam considerar o contexto local. Assim, as TVs abertas ainda precisam de conteúdo relevante.
Em 2023, das 100 maiores audiências da TV americana, 93 foram jogos da NFL e os canais de streamings estão batendo à porta de outras competições, como a NBA. Esta teve sua melhor audiência na TV aberta como o 120º programa mais visto no ano. É uma “guerra” cada vez menos acirrada.
Ligas americanas
Em função de toda uma estrutura particular, as ligas americanas podem incluir sistemas como o salary cap e limite de gastos salariais, porque tanto faz a posição na tabela, uma vez que é possível ser último e feliz, nem que seja por algum tempo.
Desconhecer a diferença em relação ao nosso futebol de cada dia é natural para quem chegou ao esporte agora.
Não é justificável para quem tem tantas informações. como temos atualmente, e ainda quer ser especialista ou líder de um processo de mudanças e profissionalização.
Neste caso, a ignorância não é uma bênção, mas uma falha.
O fair play financeiro: o que é e quais são seus objetivos
O fair play financeiro foi evoluindo ao longo dos últimos muitos anos. A ideia consolidada é de que o sistema deve garantir que os clubes operem dentro de suas possibilidades.
Assim, evitam atrasos de salários, pagamentos e dívidas que, futuramente, gerarão atrasos de pagamentos e salários. Criariam, então, um círculo vicioso.
Presente nas principais ligas da Europa e na UEFA, os modelos de fair play financeiro possuem distinções conforme os países.
De modelos mais lenientes, como o italiano, cujo controle é bastante frouxo e só afeta clubes em estado de falência, passando por um sistema discricionário como o francês, que tem um órgão (a DNCG) que avalia os clubes e indica se são saudáveis ou não. E ainda aplica sanções que podem chegar ao rebaixamento de divisão.
Temos ainda o modelo espanhol, que atua de maneira prévia à temporada, autorizando ou reprovando gastos, há um pouco de tudo.
Fair play financeiro para que o futebol seja saudável
Independente do sistema, os modelos têm o mesmo objetivo: garantir um sistema saudável e sem atraso de pagamentos.
Um sistema “caloteiro” é frágil, desconexo da realidade econômica, afasta investimentos saudáveis, e com o tempo enfraquecerá.
Um segundo objetivo é minimizar a entrada de dinheiro que vem de fora do sistema, e infla de maneira irreal as estruturas.
Donos que injetam dinheiro de forma ilimitada, elevando clubes sem expressão ao estrelato. Este é o resultado positivo, pois existe também – e muito! – o outro lado da moeda: donos que aportam muito dinheiro por um período curto, sem sucesso esportivo, e depois largam os clubes endividados, e que invariavelmente acabam falindo.
Diferença entre países
Todos se lembram do glamour de Manchester City e PSG, mas não conhecem as histórias de dezenas de clubes que afundaram após gestões perdulárias e desastrosas. A Championship inglesa é pródiga nesse tipo de situação.
A diferença entre os países está em como se chega a este objetivo. Abaixo, você confere um resumo desse cenário:
País – Liga | Controles | Método |
Inglaterra – Premier League | Evitar perdas e atrasos; Evitar excesso de aportes dos acionistas; | Controle de prejuízo máximo; Limite de cobertura de prejuízo com capital; |
Espanha – LaLiga | Evitar perdas e atrasos; | Análise do orçamento da temporada seguinte, e autorização de tetos de gastos com salários e contratações; |
Alemanha – Bundesliga | Evitar atrasos e perdas; | Controle de orçamento e análise dos números passados; |
Itália – Serie A | Evitar dívidas em atraso; | Controle de pagamentos em dia; |
França – Ligue 1 | Controle da saúde financeira dos clubes; | Análise das demonstrações financeiras; |
Portugal – Primeira Liga | Evitar atrasos de pagamentos; | Declarações trimestrais e anuais de pagamentos em dia; |
As análises estão dentro do processo de Licenciamento de Clubes, que abarca as questões financeiras, mas também aspectos de (i) infraestrutura, como condições mínimas de estádio, (ii) RH, como composição e qualificação da gestão, e (iii) legais, com detalhamento do controle acionário. Não atingir os requerimentos mínimos pode levar o clube a não obter o licenciamento e, consequentemente, não disputar as competições.
UEFA e controle de gastos
Além dos países, temos a UEFA, que controla todas as equipes que disputam suas 3 competições continentais: Champions, Europa e Conference League.
Para participar, os clubes estão sujeitos a análises de controle de gastos com o futebol em relação às receitas, de até 70% a partir de 2026/2027 (por enquanto estamos num período de adaptação, com percentuais maiores e que decrescerão).
A conta que se faz é “Gastos com Futebol / Receitas”, da seguinte forma:
- Gastos com Futebol = Salários da equipe profissional (atletas + comissão técnica) + Salários da Administração + Pagamentos a Agentes + Amortização de Aquisição de atletas;
- Receitas = Receita Total (incluindo com negociação de atletas).
Fair play financeiro no Brasil
No Brasil não temos controle de nada. Apesar do licenciamento abarcar os demais critérios, na parte financeira não há controles.
Já participei da criação de dois sistemas de controles, desde o momento em que foram construídos, com regras e fórmulas distintas. Mas nenhum foi adiante.
A ideia é sempre a mesma: garantir que o sistema opera de forma equilibrada, sem atrasos salariais ou de pagamento a qualquer tributo, encargos ou fornecedor. Um sistema equilibrado e saudável ganha credibilidade e atrai mais dinheiro.
O controle do fair play financeiro brasileiro
Para isso é preciso controlar de duas formas:
- Trimestralmente verificar se os clubes estão com os pagamentos em dia;
- Anualmente verificar se as contas indicam operações incompatíveis com a capacidade de geração de receitas, e dívidas acima da capacidade de pagamento;
- Controlar que o dinheiro de acionistas vá para investimentos em infraestrutura, e não criar elencos de maneira anabolizada e incompatível com o porte dos clubes.
E, se não atingir os objetivos, tem que sancionar. Como? Transfer ban, dedução de pontos e, no limite, não conceder a licença, o que culminaria em rebaixamento.
O transfer ban deve ser imediato e recorrente até que os pagamentos estejam novamente em dia. Devem perder pontos ainda na competição onde o clube cometeu a falta. E não conceder a licença é algo extremo, após algum tempo de reincidência de faltas, quando o clube de mostra incapaz de se adequar.
Equilíbrio para o futebol brasileiro
O modelo está pronto, testado, e levaria os clubes e o futebol brasileiro ao equilíbrio.
Mas tenham certeza de uma coisa: não ocupam os dedos de uma mão a quantidade de clubes que querem esse controle.
Inclusive aqueles que falam muito, e que são os primeiros a quebrar regras básicas de gestão.