Coteminas e fundo travam disputa sobre transferências de dinheiro pré-recuperação

Processo de recuperação judicial envolve todas as operações ligadas à empresa como a fabricante Santanense, a Springs Global, a Coteminas e a Ammo, dona da Santista, Artex e M.Martan

A crise que levou a Coteminas a pedir recuperação judicial envolve desentendimentos entre o fundo de investimento em participações Odernes, da gestora Farallon, e o empresário e maior acionista do grupo, Josué Gomes da Silva. No centro desse conflito estão transferências de recursos do caixa da Ammo Varejo para a sua controladora, a Coteminas S.A., do grupo de mesmo nome, em difícil situação financeira há anos.

Essas divergências escalaram poucos meses antes de a Coteminas, uma das mais tradicionais fabricantes de têxteis do país, pedir recuperação, numa ação cujas dívidas concursais atingem R$ 2 bilhões, uma das maiores dos últimos dois anos no país. Os desentendimentos entre Silva e o FIP Odernes foram determinantes para o pedido de proteção judicial da Coteminas.

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O processo de recuperação judicial, solicitado no dia 6, envolve todas as operações ligadas à Companhia de Tecidos Norte de Minas, como a fabricante Santanense, a Springs Global, a Coteminas e a Ammo, dona da Santista, Artex e M.Martan.

Nos materiais anexados ao processo, consultados pelo Valor, há um documento de confissão de dívida, com 16 páginas, assinado por Silva e Odernes, que relata a existência de transferências de R$ 91,2 milhões da Ammo para a Coteminas entre junho de 2022 e dezembro de 2023.

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O documento diz que cláusula de uma escritura de emissão de debêntures, de maio de 2022, define que, caso houvesse migração de recursos entre partes relacionadas após a transação, os debenturistas poderiam pedir o vencimento antecipado de toda a dívida.

Inicialmente, a operação buscava captar R$ 300 milhões, mas houve demanda apenas por parte pelo Odernes, em valores brutos de R$ 180 milhões (conversíveis em ações). O saldo final foi de R$ 172,4 milhões, soma que efetivamente entrou no caixa da Ammo em junho de 2022, quando começou o envio do dinheiro para a Coteminas. Logo, as somas transferidas equivaleram a mais metade do total emitido.

Com o capital, a ideia seria por de pé um plano para abrir novas lojas, ampliar mix de produtos e reforçar capital de giro da Ammo, medidas que não teriam avançado, na percepção do fundo. A emissão foi concluída após tentativa de abertura de capital da Ammo, que não evoluiu em 2022 porque o mercado de ofertas se fechou.

Em seu pedido de recuperação enviado à 2ª Vara Empresarial da Comarca de Belo Horizonte, a Coteminas não detalha a cláusula desrespeitada. Relata apenas que a “não observância de determinadas obrigações” numa emissão de debêntures da Ammo poderia levar ao vencimento antecipado da dívida. E isso complicaria ainda mais situação de todo o grupo. Por isso, buscou a proteção judicial.

Como garantia à emissão das debêntures foram dadas 100% das ações da Ammo, operação crucial para o grupo, já que responde por 40% da receita da Coteminas. Se executasse a garantia, o Odernes se tornaria controlador da Artex, Santista, MMartan, Casa Moysés e Persono, com vendas bruta de R$ 500 milhões em 2022, último ano com dados publicados, mas R$ 200 milhões em prejuízo acumulado.

Em 2 de maio, o fundo, então, enviou notificação para Ammo e Coteminas, relatando que acionaria as garantias e o direito à propriedade das ações. Quatro dias depois, o pedido de recuperação foi protocolado na Justiça mineira.

Antes disso, em 12 de dezembro, o Odernes informou a Coteminas e a Ammo que via “dificuldades” de reconciliar o uso do caixa da Ammo. Representantes do fundo já acompanhavam o tema de perto, e tinham informações de que a Ammo atrasava pagamentos e que o caixa vinha se reduzindo paulatinamente.

Na notificação, pediu o envio, em até cinco dias úteis, de todas as movimentações do caixa da Ammo e Coteminas desde a emissão das debêntures, além dos balancentes e a confirmação de que não havia ocorrido qualquer desembolso.

Depois disso, em 21 de dezembro, foi encaminhada outra notificação informando que, após o prazo de cinco dias, o Odernes havia recebido apenas extratos bancários, e, sem avanços nas tratativas, poderia antecipar o vencimento.

Em valores atualizados, eram R$ 260 milhões em aberto.

O Valor apurou que o clima de tensão foi escalando na Ammo no ano passado, quando representantes do fundo trouxeram, inicialmente, o problema das transferências em reuniões entre as partes.

Havia discordâncias de lado a lado. Para a Coteminas, o fundo via “pelo em ovo” para buscar a execução das garantias, na expressão de uma pessoa a dar das conversas. Já para o fundo, a Coteminas quebrava uma relação de confiança, desrespeitando a principal cláusula do acordo negociado antes da emissão.

Na tentativa de avançar num entendimento, em fevereiro ficou acertado um termo de confissão da dívida, assinado pelas partes no dia 7 daquele mês. Silva ainda sairia do conselho de administração da Ammo (ele renunciou oficialmente naquela semana), e a dívida confessada seria atualizada em 100% da taxa DI.

Silva ainda não teria nenhuma procuração para mexer nas contas da Ammo.

O acordo envolvia alguma forma de liquidar a transação, por um “evento de liquidez”, como a entrada de sócios na empresa ou venda da Ammo. Nas últimas semanas, o Valor chegou a noticiar que o grupo Coteminas buscava compradores para seus negócios. Mas o fundo diz nos autos que a venda da Ammo não avançou.

A partir daí, em maio, o Odernes comunicou o vencimento automático das dívidas.

Quando pediu a recuperação judicial, os advogados da empresa relatavam nos autos que a Coteminas vinha sendo ameaçada pelo fundo, e pressionada pela Farallon a aditar os contratos e prestar garantias adicionais, até que se achasse um caminho para a dívida em aberto.

E dizia que a confissão de dívida não informava o valor de uma “obrigação certa” (o documento citava R$ 91.191.214,21 como dívida confessada). E também que o fundo interferia na administração da Ammo. Esse cenário de ameaças levou a uma “crise sem precedentes” na empresa, afirmava a Coteminas nos autos.

Fontes próximas ao grupo dizem que a Farallon indicou nomes de sua confiança para o cargo de CEO da Ammo, com uma mudança em abril de 2023, e que Silva era contrário à alteração. Na época, a venda da Ammo já desacelerava, passado o “boom” da demanda por produtos para casa na pandemia. E contam que, após a troca, os resultados pioraram.

Nos bastidores, representantes do fundo negam a deterioração por causa da mudança. Dizem que “headhunters” buscaram os nomes, e que Silva sabia da necessidade de melhorar os resultados, e queria a troca da presidência.

Ainda segundo pessoas ligadas à empresa, Silva deu neste ano novas garantias ao fundo, como a Fazenda do Cantagalo, em Montes Claros (MG), após as notificações sobre vencimento de dívida, numa demonstração de boa-fé de Silva.

“Ninguém escondeu nada sobre esse assunto [da transferência de dinheiro], tanto que se fala no processo da relação próxima entre controlador e controladas, e todas estão listadas na recuperação”, diz uma pessoa próxima ao grupo.

“Até pode ter tido alguma transferência, mas isso é comum nesses negócios, porque muito dinheiro entra e sai. A questão são as exigências que foram sendo feitas e sobre um negócio que o fundo passou a acompanhar a gestão”, completa.

Para o Odernes, segundo apurou o Valor, as garantias extras tratavam apenas de reforço “colateral” , e isso não tira o direito de antecipação do vencimento total.

A lista de credores da Coteminas ainda não foi divulgada. O fundo entende que não tem que estar nessa lista, já que são debêntures extraconcursais, diz fonte.

No pedido de recuperação, a empresa diz que as dificuldades do grupo começaram em 1999, e os problemas se intensificaram com as crise econômicas e o avanço da covid-19. O faturamento bruto do grupo Coteminas, incluindo controladas, caiu de R$ 3 bilhões em 2021 para R$ 1 bilhão em 2023.

Procurado, o fundo Odernes não se manifestou. A Coteminas confirma que a confissão de dívida está no bojo dos documentos da renegociação da operação com a Farallon/Odernes em fevereiro. Informa ainda que o tema da renegociação foi relatado em fatos relevantes, instrumentos por meio dos quais a Farallon/Odernes reconheceram que não chamariam o vencimento antecipado das operações.

Afirma ainda que a renegociação com o fundo envolveu garantias adicionais, “portanto, não há razão legal ou contratual para o vencimento antecipado”. E que Coteminas, Ammo e outras empresas do grupo já obtiveram liminar para preservação de seus ativos. Por fim, entende que a recuperação trará as condições para o grupo sair da atual situação.

Com informações do Valor Pro, serviço de notícias em tempo real do Valor Econômico

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