Do café de Getúlio ao vinho de Macron: por que destruir a produção para controlar os preços?

França destruirá plantações para controlar preço dos vinhos; entenda por que o agro usa historicamente esse método e os riscos envolvidos

Crédito: Kym Ellis - Unsplash
Crédito: Kym Ellis - Unsplash

Quase 100 anos se passaram desde que o governo de Getúlio Vargas decidiu queimar sacas de café para controlar o preço da commodity. Depois da quebra da bolsa de Nova York, em 1929, as exportações de café mergulharam. Com isso, em 1931, o governo provisório de Vargas botou fogo em mais de 70 milhões de sacas, segundo informações do Conselho Nacional do Café.

Recentemente, a França anunciou medida de contenção da oferta de vinhos que pode ser comparada ao que houve no Brasil. Porém, em vez de queimar a produção, o país destruirá lavouras. Cerca de 4% da área de vinhedos da França será derrubada por determinação do governo de Emmanuel Macron a um custo de 120 milhões de euros.

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Essa medida de controlar preços via destruição da produção “ainda acontece, embora não seja mais tão comum. Historicamente, isso já aconteceu de maneira mais recorrente”, diz Leandro Gilio, pesquisador e professor do Núcleo de Agronegócio Global do Insper.

Para Gilio, o objetivo do governo Macron hoje é o mesmo de Getúlio no início da Segunda República. Contudo, ele alerta que, tanto lá quanto aqui, as decisões têm um forte componente político para além do econômico.

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“Existia aqui no Brasil uma forte influência da economia cafeeira dentro do governo e um elo do governo com esses produtores”, destaca o pesquisador.

Lobby lá e aqui

Na França, o lobby do setor de vinhos também pode ser apontado como motivo para a decisão de corte remunerado das áreas destinadas à produção. “O Ministério (da Agricultura da França) está ao lado dos viticultores para ajudá-los a superar as dificuldades estruturais e econômicas que enfrentam”, reconheceu a autoridade francesa em comunicado público.

Nesse sentido, o professor do Insper diz que “o governo acaba gastando um grande volume de dinheiro para proteger um setor específico e poucos produtores acabam se beneficiando disso. E boa parte da população paga o preço”.

Claudio Pinheiro Machado Filho, professor da FIA Business School, também alerta para a pressão dos agricultores na decisão da França.

“Existe um lobby muito forte do setor, que conseguiu, junto ao governo, esses recursos para redução da oferta. Esses setores passam a ter esse incentivo para eliminação de áreas de plantio em regiões delimitadas”, explica.

Os agricultores franceses afetados devem receber como indenização algo perto de 4 mil euros por hectare inutilizado.

França não depende do vinho como Brasil dependeu do café

Machado concorda que a destruição de vinhedos na França pode ser equiparada à decisão de Getúlio sobre as sacas de café, embora em dimensões bem diferentes, dado que o Brasil era dependente da economia cafeeira.

Além disso, no caso da França e do setor de vinhos, há a diferença com relação à qualidade do produto, que “não tem essa característica de commodity, como o café”, destaca o professor.

“Então, o vinho é um produto diferenciado, com maior valor agregado, e, portanto, é mais eficiente a estratégia de controlar o preço”, acrescenta o professora da FIA.  

Perigo para a eficiência do mercado no médio e longo prazos

Por outro lado, Gilio destaca que, ao interromper a lógica concorrencial do mercado, que retira produtores menos eficientes da disputa, pode haver perda de produtividade. Isso se a política for mais extensa do que o apropriado, afetando o que ele chama de “equilíbrio natural” do mercado.

O professor do Insper destaca que o Brasil teve uma política de forte defesa da produção agropecuária até a década de 1990. Naquela época, o governo intervia de maneira direta para controlar a produção e os preços, embora de maneira não tão radical, quanto nas queimas de sacas.

“Depois desse período do café, em outros momentos, o Brasil teve um controle pouco mais rígido com relação à produção de cana, por exemplo. Mas, depois, o governo foi saindo um pouco dessa parte de intervenção muito direta na produção e, assim, o mercado foi se balizando um pouco mais pelas regras de mercado”, acrescenta o professor e pesquisador do Insper.

Mais recentemente, já no período democrático, o Brasil ainda criou outros mecanismos para tentar controlar produção e preços, ainda que de maneira indireta, como as políticas de compras públicas e de preço mínimo. “Ainda assim, esse tipo de política não produziu os efeitos esperados. Era muito mais gasto para o governo que benefício para as pessoas”, explica Gilio.

Crédito agro é controle remanescente do estado sobre a produção

Hoje, o governo está basicamente restrito à oferta de crédito incentivado para o setor, enquanto a gestão fica por conta do próprio mercado. Isso não quer dizer que o setor esteja isento de quebras de safras ou supersafras.

Já na França, a intervenção parece ser pontual e não uma política protecionista mais ampla. Ainda assim, não há garantias de que essa medida cause os efeitos esperados para controle dos preços dos vinhos franceses.

“Isso acaba sendo um pouco insustentável porque o governo acaba remunerando o produtor para que não produza. Assim, ele pode acabar se mantendo no mercado. Então, isso é uma redução momentânea de oferta e, pensando no futuro, (o produtor indenizado) pode voltar a produzir e os preços caírem novamente”, alerta o pesquisador.

França segue vendendo para o mundo, mas reduz entrada na China

Machado, da FIA, diz que a ação de correção de áreas na França tem como um dos motivos o aumento da produção chinesa, “reduzindo a importação de vinhos franceses para aquele país”.

Na China, os grandes conglomerados urbanos que foram se desenvolvendo ao longo das duas últimas décadas tiveram como efeito o êxodo rural para essas cidades. “E aquelas agriculturas mais tradicionais, do campesinato, foram dando lugar a uma agroindústria mais sofisticada, com uso de tecnologias”, explica o professor da FIA.

“Hoje, a China apresenta um cenário heterogêneo. Então, ainda tem agricultura muito tradicional e com menor eficiência, baseado muito em produção para consumo próprio, coexistindo com uma agroindústria muito moderna ”, acrescenta.

Nesse sentido, a China, embora tenha extensão territorial, tem relativamente pouca condição para expansão da sua área de produção. A escassez de alguns recursos, especialmente água, limita o alcance da China como player global da agroindústria, ao menos em proporção parecida com o que o gigante asiático tem em outras manufaturas.

A China chegou a exportar alguns vinhos para o Brasil antes da pandemia. Contudo, já há alguns anos, esse movimento foi encerrado. Já a França mantém nível de exportações de vinhos ao Brasil pelos últimos dez anos, pelo menos.

Histórico de importação de vinhos no Brasil nos últimos dez anos

País/Período2024 2023 2022 2021 2020 2019
França40.449.39750.587.41939.119.76744.018.75833.708.95938.310.444
China000002.458
País/Período201820172016201520142013
França35.359.10340.247.20527.959.56741.203.01348.311.51746.190.611
China472613213000
Fonte: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio; Valores em dólares FOB
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