Fundador da Uber está por trás do maior negócio de “dark kitchens” do Brasil

Aproveitando a experiência de quando foi executivo-chefe da empresa e lançou o serviço Uber Eats, Kalanick tem expandido em ritmo acelerado sua startup americana CloudKitchens

A cultura de sigilo reflete a abordagem de Travis Kalanick para os negócios após sua amarga saída da Uber. Foto: REUTERS/Mario Anzuoni
A cultura de sigilo reflete a abordagem de Travis Kalanick para os negócios após sua amarga saída da Uber. Foto: REUTERS/Mario Anzuoni

Travis Kalanick, fundador da Uber, erigiu discretamente uma grande operação de entregas de refeições e produtos de conveniência na América Latina para tentar capitalizar o alto crescimento do mercado de comércio eletrônico na região.

Aproveitando a experiência de quando foi executivo-chefe da empresa e lançou o serviço Uber Eats, Kalanick tem expandido em ritmo acelerado sua startup americana CloudKitchens na América Latina por meio da compra e construção de “dark kitchens” ao longo dos últimos três anos, como parte de seu plano para criar uma rede mundial de centros de entrega de alimentos.

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Além do negócio das dark kitchens, que compra propriedades e usa o espaço para preparar refeições para viagem ou para entrega em domicílio, ele lançou a Pik N’ Pak. A empresa armazena artigos de conveniência, como remédios e ração, nas instalações de quase 50 “cozinhas ocultas” da CloudKitchens em 11 cidades, no Brasil, México e Colômbia. Assim como no caso da CloudKitchens, os produtos da Pik N’ Pak são enviados aos clientes por meio de empresas locais de aplicativos de entrega em domicílio.

A relação entre a Pik N’ Pak e a CloudKitchens, antes não revelada, faz parte da tentativa deliberada de expandir-se com sigilo, com as empresas locais sendo mantidas distantes da controladora de forma a evitar que sejam ligadas ao nome de Kalanick, segundo três ex-funcionários da CloudKitchens, que falaram sob condição de anonimato em razão de cláusulas rigorosas de confidencialidade.

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“Quando se tem um executivo-chefe tão impactante e controverso quanto Travis, ele não quer associar a marca a ele”, disse um ex-gerente, que trabalhou nas operações latino-americanas da CloudKitchens.

Expansão acelerada

Kalanick expandiu rapidamente a CloudKitchens pelo mundo desde que assumiu a empresa em 2018, depois de se ver forçado a sair da Uber em 2017 na esteira de diversos escândalos. Em novembro, a CloudKitchens foi avaliada em US$ 15 bilhões, após uma rodada de financiamento de US$ 850 milhões. A CloudKitchens tem mais de 4 mil funcionários no mundo, de acordo com duas fontes. A CloudKitchens não quis comentar as informações.

A cultura de sigilo reflete a abordagem de Kalanick para os negócios após sua amarga saída da Uber. Os funcionários são proibidos de mencionar que trabalham na empresa no LinkedIn e, em vez do nome da empresa, escrevem startup “stealth” – “invisível”, um termo em inglês normalmente reservado para empresas ainda não lançadas.

“Isso está relacionado à forma como ele foi atacado no passado”, disse um antigo alto funcionário da CloudKitchens. “A situação da Uber não foi nada boa para ele. Ele queria expandir [a CloudKitchens na América Latina], não queria chamar muita atenção, queria dominar o setor.”

No entanto, fontes próximas ao empresário disseram que sua abordagem ameaça atrapalhar o crescimento da empresa e traz características de seus tempos na Uber. Princípios célebres da Uber, como “Always Be Hustlin’”, [algo como “sempre dê o máximo no trabalho”, o que na gíria em inglês também pode cruzar o limite da legalidade], foram absorvidos pela CloudKitchens.

Ex-funcionários disseram que as divisões da empresa eram mantidas no escuro sobre outras partes relacionadas dos negócios, o que, em parte, tem provocado uma rotatividade extremamente alta de inquilinos em suas instalações.

“Para que eu cresça, preciso entender como as operações estão crescendo ou como as finanças estão crescendo”, disse uma fonte. “Mas isso era muito compartimentado.”

A CloudKitchens emprega cerca de 500 pessoas na América Latina e opera cerca de 70 locais, com 1,8 mil módulos de cozinhas individuais, em oito países, de acordo com dois ex-altos funcionários com conhecimento direto das operações da empresa.

A Pik N’ Pak usa o espaço ocioso das instalações de cozinhas da CloudKitchens – como porão e corredores – para armazenar produtos como medicamentos de venda livre, rações para animais de estimação e brinquedos sexuais. Em seu material promocional, a Pik N’ Pak informa que oferece aos varejistas acesso a “milhões de clientes”.

As marcas varejistas podem alugar espaço nas prateleiras e comercializar seus produtos em aplicativos de entrega de alimentos da América Latina, como Rappi ou Cornershop, que cuidam do pagamento e da entrega ao cliente.

O crescimento da CloudKitchens na região foi estimulado por, pelo menos, duas aquisições. Em 2020, a empresa comprou a empresa mexicana de cozinhas Nano, por US$ 20 milhões, segundo dados da PitchBook.

Em 2019, em transação antes não divulgada, a CloudKitchens adquiriu a empresa colombiana de cozinhas Cocinas Ocultas, fundada um ano antes pelos empresários italianos Raffaele Sertorio e Edoardo Dellepiane.

A equipe da Cocinas Ocultas foi encarregada de desenvolver os negócios da CloudKitchens em todo o continente. Sob a marca Cocinas Ocultas, a CloudKitchens agora opera na Colômbia, Peru, Costa Rica, Panamá, Chile e Equador. No México, a empresa atua sob o nome VirtualKitchens.

No Brasil, Kitchen Central

No Brasil, a CloudKitchens atua como Kitchen Central e é a líder de mercado, segundo Renato Avó, diretor da área de varejo na firma de consultoria 360 Varejo. Os gastos com entrega de alimentos no país aumentaram quase 25% em 2021, para R$ 40,5 bilhões (US$ 7,8 bilhões), de acordo com um estudo da GS&NPD e do Foodservice Institute Brazil.

“Acredita-se que operações das dark kitchens representarão cerca de 15% desse total”, disse Avó.

No entanto, o crescimento do modelo das cozinhas ocultas na América Latina tem causado polêmica em algumas cidades. A proliferação em São Paulo, maior cidade das Américas, gera reclamações de moradores nas vizinhanças, e é possível ver faixas contra novas instalações em bairros de alta renda.

A prefeitura propôs uma regulamentação local para as dark kitchens e no início do ano proibiu temporariamente a emissão de novas licenças.

As pessoas reclamam do barulho, cheiro, fumaça e motociclistas – conhecidos informalmente como motoboys – que ficam do lado de fora à espera de pedidos. Um morador insatisfeito disse que o filho havia sido apelidado de “bacon” e sofrido bullying na escola pelo cheiro das roupas, segundo Cris Monteiro, vereadora em São Paulo.

Ela disse que houve contatos com a empresa antes do início das polêmicas, mas questionou sua disposição de chegar a um acordo.

“Compreendo a posição do empresário. Eles dizem que estão estabelecidos de forma legal. Para mim, essa resposta não mostra o desejo de cooperar”, acrescentou. “Não os vejo querendo resolver o problema juntamente com a comunidade.”

Um antigo alto funcionário da CloudKitchens na América Latina disse que a empresa ficou mais atenta às práticas comerciais locais. Outros próximos a Kalanick dizem, contudo, que os antigos hábitos poderiam continuar.

“A única coisa que Travis aprendeu sobre seus tempos na Uber é não confiar na imprensa e não confiar em investidores de capital de risco”, disse um antigo alto funcionário da empresa.

Por Dave Lee e Michael Pooler, Financial Times — San Francisco e São Paulo
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