Entre o deserto e o Mar Vermelho, Sharm el-Sheikh evidencia contradições da COP27

Problemas no centro de convenções, vigilância e limitações a protestos roubam os holofotes das negociações; balneário com resorts viu fluxo de turistas cair com a guerra na Ucrânia

Na sede da conferência da ONU sobre mudanças climáticas, no Egito, a paisagem de praias belíssimas convive com restrições à internet, controles diversos e presos políticos Mohammed - Foto: Abed/AFP
Na sede da conferência da ONU sobre mudanças climáticas, no Egito, a paisagem de praias belíssimas convive com restrições à internet, controles diversos e presos políticos Mohammed - Foto: Abed/AFP

A COP27, a conferência ambiental da ONU, pode até ter como anfitrião o Egito, mas quem fez a viagem com a expectativa de ver as pirâmides ficou frustrado. A cidade-sede deste ano é o balneário de Sharm el-Sheikh, na ponta da Península do Sinai, que separa o deserto montanhoso do Mar Vermelho e evidencia as contradições inerentes à reunião climática.

A menos de uma hora de voo do Cairo, alguns “charmes de Sharm”, expressão que os participantes da COP vêm usando, ironicamente ou não, para se referir ao que a cidade tem a oferecer, estão no oceano. Na entrada do Golfo de Ácaba, tem belíssimas praias e corais que propiciam uma rica vida marinha e fazem da região um dos maiores destinos turísticos egípcios.

Receba no seu e-mail a Calculadora de Aposentadoria 1-3-6-9® e descubra quanto você precisa juntar para se aposentar sem depender do INSS

Com a inscrição você concorda com os Termos de Uso e Política de Privacidade e passa a receber nossas newsletters gratuitamente

Há ainda atrativos bíblicos, já que a cidade fica a pouco mais de 200 km de Jabal Musa, montanha apontada como uma das possíveis localizações do Monte Sinai, lugar onde Moisés teria recebido os 10 mandamentos. É um dos pontos mais sagrados para cristãos, judeus e muçulmanos.

Sharm, ainda assim, lembra mais Cancún, sede da COP16, com suas longas avenidas e resorts à beira-mar. Com estátuas de dinossauros que coabitam com a réplica de um anfiteatro romano e um “mercado velho” construído há apenas algumas décadas, as associações com Las Vegas também são inevitáveis — uma versão mais modesta da cidade americana. E com placas em russo.

Últimas em Economia

Até o ano passado, turistas russos e ucranianos eram 31% daqueles que desembarcavam em Sharm el-Sheikh, segundo números oficiais do governo egípcio. Só no segundo semestre de 2021, foram mais de 1,1 milhão de visitantes do país de Vladimir Putin e 794 mil da nação de Volodymyr Zelensky, volume facilitado pela proximidade geográfica e por pacotes relativamente baratos.

Não há números que mostram o impacto da guerra, mas o próprio governo sinaliza para uma queda da entrada de moeda estrangeira, ameaçando a recuperação de um setor que representa 15% da economia egípcia. A COP27 é um respiro para a ocupação hoteleira, mas nos últimos dias os problemas dividem holofotes com as emperradas negociações climáticas.

Problemas na COP

Os hotéis aumentaram exponencialmente o preço de suas diárias, e nos primeiros dias da conferência foram várias as denúncias de reservas canceladas ou de lugares que demandavam mais dinheiro quando os hóspedes chegavam. No espaço onde ocorre a conferência, o Centro de Convenção Internacional Tonino Lamborghini, chegou a faltar comida, água e a vazar esgoto.

O acesso à internet é difícil em vários pontos do centro de convenção e inexistente em boa parte dos quartos de hotel — para amenizar, a companhia telefônica que patrocina o evento distribui chips com 10GB em dados para os participantes. Apesar do acesso à rede, as páginas de vários portais de notícia, como a da al-Jazeera, emissora do Catar, e de organizações dos direitos humanos foram bloqueadas. Uma busca no Google sobre notícias referentes ao bloqueio também não rende resultados.

A realização de uma conferência da ONU, e uma em que a justiça climática é tema central dos debates, em um país de regime ditatorial também é motivo de críticas. Estima-se que haja mais de 60 mil prisioneiros políticos no país, cerca de metade de toda a população carcerária egípcia. Um dos mais notórios dele é Alaa Abdel Fattah, que anunciou que começaria uma greve de fome no último dia 6, data que coincidiria com o início da COP.

Não sem tem notícias de Alaa desde então, e sua família teme que ele esteja sendo alimentado à força pelo governo de Abdel Fattah el-Sisi para que não morra enquanto todos observam o Egito. A gravação de uma coletiva de imprensa em que sua irmã, Sanaa Seif, foi interrompida por um parlamentar pró-governo virou notícia internacional.

O espaço para protestos também é limitadíssimo — manifestações só podem ocorrer dentro do complexo da COP, e mesmo assim são filmados por seguranças. Haveria ainda uma área mítica para protestar fora do espaço da conferência, mas ninguém sabe ao certo dizer onde ela fica. Nas ruas, há seguranças por todo canto, e os passaportes de quem desembarca no aeroporto são fotografados por pessoas identificadas com a logo da COP.

Vigilância

Quem chega no país pela Egypt Air vê também um vídeo do aplicativo oficial do evento, que o anuncia como um facilitador para os participantes. Ele demanda, entretanto, autorização para o acesso a e-mails, fotos e a localização de usuários, despertando críticas de que é usado pelo governo para monitorar críticos.

Nas semanas antes da COP27, ativistas foram presos e, segundo relatos, egípcios que não estavam envolvidos com a cúpula foram forçados a deixar a cidade, cujo perímetro é protegido com uma cerca e pontos de checagem. Egípcios que querem entrar têm que comprovar que trabalham na região.

A cidade tem segurança reforçada já há mais de 15 anos, após ser palco em 2005 de atentados que deixaram 88 mortos. Em 2015, um voo que levava turistas russos de volta para casa explodiu pouco após deixar Sharm, ataque cuja autoria foi reivindicada pelo braço local do Estado Islâmico.

Também é visível que a cidade recebeu maquiagem nas últimas semanas para receber a COP, com veto recente a sacolas plásticas e a introdução de ônibus elétricos, por exemplo — mas o histórico do governo egípcio faz muitos questionarem até que ponto o comprometimento é sério. Com os cortes russos na venda de gás para a Europa, o país almeja aumentar suas exportações do combustível fóssil.

Há também neste ano um número recorde de lobistas dos fósseis: são cerca de 600, 25% a mais que no ano passado. O aumento é explicado pela crise energética europeia, mas também pelo fato de a próxima COP já ter sede confirmada nos Emirados Árabes.

Por Ana Rosa Alves, de O Globo — Sharm el-Sheikh, Egito. A jornalista viajou a Sharm el-Sheikh a convite do Instituto Clima e Sociedade (iCS).

A Inteligência Financeira é um canal jornalístico e este conteúdo não deve ser interpretado como uma recomendação de compra ou venda de investimentos. Antes de investir, verifique seu perfil de investidor, seus objetivos e mantenha-se sempre bem informado.


VER MAIS NOTÍCIAS