Por que a crise não chega para os mais ricos?

Investimentos protegem esse segmento social da inflação, mantendo ou até aumentando o poder de compra. Por outro lado, a baixa renda sofre com alta de preços de alimentos e juros altos

Foto: Yaroslav Muzychenko / Unsplash
Foto: Yaroslav Muzychenko / Unsplash

Se há um tema em que os analistas de ações costumam concordar é que nos momentos de economia conturbada (para dizer o mínimo) como a que vivemos hoje, o investidor deve olhar para empresas que atendem as classes A e B. Na hora de montar a carteira, a aposta é que varejistas, shoppings e construtoras que servem aos mais ricos tenham resultados melhores nesses tempos difíceis de inflação e juros altos.

A explicação é simples: a crise não atinge os ricos da mesma forma que atinge os pobres. Muitas vezes sequer chega para os mais abastados. Há até casos em que eles acumulam patrimônio ainda maior em cenários assim. Com inflação em alta, desemprego, perda de renda e juros de dois dígitos, o abismo social só cresce, sempre a favor dos endinheirados.

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A tese vai se confirmando na medida em que os resultados trimestrais das empresas foram divulgados. Um exemplo é o varejo de moda. Houve uma grande diferença de performance entre alta renda e as demais.

De acordo com Marcelo Inoue, analista de ações da Perfin, marcas que vendem mais para as classes A e B, como Arezzo, Soma, Track & Field e Vivara, tiveram em média um crescimento de receita de 45% no segundo trimestre deste ano. Enquanto empresas que atendem mais classes populares como Marisa, Alpargatas, C&A, Guararapes (Riachuelo), Renner e Centauro cresceram em média 28% na receita no mesmo período.

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“Veja como a diferença de classes impacta a demanda. Na Arezzo, tem marcas de classe B e classe B e C, como a Ana Capri. Entre elas, é a marca que está crescendo menos dentro do grupo Arezzo, porque é mais média renda. Enquanto as outras marcas do grupo, para um faixa de renda mais alta, estão indo bem melhor”, afirma o analista.

As incorporadoras de média e alta renda também registraram resultados melhores nas prévias do terceiro trimestre. A MRV&Co, que atua principalmente na baixa renda, foi a surpresa negativa.

Todas as empresas de médio e alto padrão listadas tiveram vendas maiores entre julho e setembro do que no mesmo período de 2021. E a história se repete no que diz respeito ao setor de shoppings.

Enquanto Iguatemi e Multiplan conseguem repassar preços de aluguéis com mais facilidade, BR Malls e Aliansce Sonae sofrem com margens mais apertadas e maior risco de vacância entre lojistas.

“Como o lojista de classe A B tem vendido mais e ganhado mais dinheiro, ele tem mais poder de barganha com os shoppings”, pontua Inoue.

Exatamente por servir classes mais altas, o Iguatemi, por exemplo, é uma ação de escolha do gestor de fundos Fernando Pina, da Lis Capital. Mesmo no tempo de pandemia, empresas assim se saíram bem em comparação às demais.

“O Iguatemi tem shoppings de referência em públicos A/B. Cobraram os aluguéis e conseguiram fazer o reajuste dos aluguéis. Passaram por um bom teste de estresse”, diz.

Inflação

Uma das explicações matemáticas que ajudam a compreender esse fenômeno de discrepância social é o peso da inflação dos alimentos para cada classe. Os mais pobres sofrem muito mais com a alta da comida, que é seu gasto primário, portanto, de grande peso no orçamento.

“Sempre que a gente fala de inflação mais alta de alimentos, falamos de um custo de vida mais elevado para baixa renda. Porque quanto menos ganha, mais a cesta deles fica empobrecida. Os alimentos foram os grandes vilões da inflação nos últimos 12 meses. A alimentação sobe quase o dobro da inflação média”, afirma André Braz, economista da FGV/Ibre. O especialista explica que quanto menor a renda, mais se sente o peso do preço dos alimentos.

Por outro lado, o orçamento dos mais ricos se divide também entre outras categorias, como viagens, lazer, combustíveis e serviços. Dessa forma, os alimentos têm um peso menor na conta das classes mais altas.

Entre eles existe até uma demanda reprimida pela pandemia, onde gastaram menos com roupas, sapatos, acessórios e viagens. E juntaram mais dinheiro no período, já que contavam com reserva de emergência e muitos tiveram o privilégio de trabalhar de casa e manter seus empregos.

“Eu tive de comprar sapatos novos porque os meus se acabaram sem uso na pandemia. Foi a primeira vez que comprei por necessidade, digamos assim. Ficaram realmente velhos e precisava de novos para voltar ao trabalho presencial”, afirma a assessora parlamentar D. Castro, de 37 anos.
Para quem ganha menos, entretanto, não sobra dinheiro para mais nada além de comer. A bem da verdade, para pelo menos 33 milhões de pessoas falta até para isso. De acordo com os dados mais recentes da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), essa é a quantidade de pessoas em situação de fome no país. Embora o dado tenha sido refutado pelo atual governo mais de uma vez.

Um estudo em conjunto de cinco agências internacionais, incluindo a Organização das Nações Unidas (ONU): Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), aponta que a insegurança alimentar no Brasil atinge mais de 60 milhões de pessoas. O termo ‘insegurança alimentar’ caracteriza situação em que não há alimentos suficientes para toda a família e essas pessoas não têm o que comer por mais de um dia.

É por isso que comprar ou trocar a televisão ou geladeira no Magazine Luiza ou Casas Bahia já não é prioridade. Muito menos roupas e calçados novos.

Mas e a deflação?

Sim. É verdade que o Brasil registrou deflação, que é quando a inflação fica negativa, por três meses este ano, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Mas até nisso, o mais pobre se deu mal.

O modo como foi provocada esta baixa de custos foi por meio de incentivos do governo no corte de impostos nos combustíveis, energia elétrica e setor de telecomunicações. Os alimentos, justamente o que mais pesa para a baixa renda, continuam em alta.

“O que foi feito nos últimos meses para arrefecer a inflação beneficiou as classes mais altas. Gasolina é artigo de luxo. O ICMS na conta de luz já era reduzido para os mais pobres, então não atingiu. Não mudou para eles. Talvez a parte do setor de comunicação tenha ajudado de alguma forma as famílias de baixa renda. Mesmo a deflação não foi percebida pelos mais pobres”, afirma Braz, da FGV Ibre.

Ele explica que os alimentos até recuaram de preço, ficando negativos por um mês. Mas isso não foi o suficiente para compensar o acumulado de preços dos últimos 12 meses. Ou seja, não deu para aliviar no bolso de quem mais precisa. Ter um impacto pontual é muito pouco para compensar os acumulados.

Juros contra e juros a favor
E não é que a inflação não atinja os mais ricos. Ela também corrói o dinheiro deles, sim, senhor. A diferença é que as classes mais altas costumam estar protegidas pelos investimentos (claro, quando têm uma carteira adequada).

“As famílias de maior renda gostam de juros mais altos porque é uma forma de remunerar seus investimentos. Em cenários assim, fica mais fácil acumular patrimônio até nas aplicações conservadoras. É algo que favorece a alta renda”, afirma André Braz.

Dessa forma, a perda de renda é mitigada pelos juros, pelos investimentos. Ou seja, há uma reposição de capital. São os investimentos que mantêm o poder de compra e equilibram a balança da crise para quem tem mais dinheiro.

“Mas as famílias de baixa renda vão precisar de empréstimo para driblar o desemprego e o mais pobre não tem acesso ao sistema financeiro. Vai se endividar mais. Enquanto o rico vê o dinheiro render mais, o indivíduo de baixa renda perde com a inflação, porque não tem proteção, os juros são altos e ele não consegue captar recurso para completar a renda no momento de maior aperto”, completa.

E como iniciamos este texto, as ações também são uma forma de investimento para se proteger da inflação. Optando por ações melhores, os rendimentos saltam e mais uma vez o rico fica mais rico.

Dá até para dizer que existe uma espécie de retroalimentação do sistema. Os ricos compram ações das empresas que fazem parte de seu dia a dia de consumo. Eles usufruem dos serviços das companhias, que por sua vez se saem melhor nos resultados e tendem a se valorizar no mercado financeiro, onde eles investem.

Sobretudo depois da pandemia, onde conseguiram acumular algum patrimônio por deixar de gastar com viagens, lazer e vestuário, os mais ricos conseguiram aumentar o patrimônio. Empresas de gestão de fortunas viram o negócio crescer nos últimos três anos.

Na outra ponta, bancos e financeiras também conseguem cobrar juros mais caros de empréstimos dos mais pobres, que sentem cada vez mais dificuldade para honrar os compromissos.

Ou seja, em português claro, os juros altos melhoram os retornos das aplicações financeiras dos ricos, enquanto encarecem, e muito, os empréstimos pedidos pelos pobres, que ficam cada vez mais pobres, num caminho praticamente sem volta.

Apesar da tendência de alta da inadimplência, a perspectiva de recuperação do dinheiro vem junto com os juros sobre juros. Ou seja, aqueles que pagarem estarão, de certo modo (mas não inteiramente) cobrindo o prejuízo dos calotes. E esse cálculo de risco-retorno já está embutido nas taxas. Os bancos sabem o que fazem.

Recessão

O mercado segue preocupado com a iminente recessão global. Depois da pandemia e com o agravamento da guerra entre Ucrânia e Rússia, a inflação disparou pelo globo e vem forçando os bancos centrais a aumentarem os juros.

Quando as taxas sobem, o efeito (pelo menos em tese) é de desencorajamento do consumo e, por consequência, queda da inflação. Mas também freio da economia, que deixa de crescer e pode encolher – causando a recessão.

O que é visto majoritariamente como uma notícia ruim (a recessão global) para quem investe, pode ser algo positivo para os mais pobres. Muita calma para entender esse “algo positivo”. O movimento global deve afetar o preço das commodities, entre elas, as agrícolas. Ou seja, é possível que haja uma queda no preço dos alimentos.

“Os alimentos tendem a desacelerar seguindo a tendência de grandes economias. Recessão freia o avanço do preço de muitas commodities, como agrícolas. Daqui pra frente a gente talvez tenha uma trégua no preço dos alimentos, com oferta maior, os preços caem. Alimentos não são algo fácil de estocar. Portanto, é provável que ceda um pouco o valor deles”, diz Braz.

Vale lembrar, no entanto, que, se a recessão global pode ajudar a vida dos mais pobres, com uma possível queda dos preços dos alimentos, acaba prejudicando em todos os outros aspectos. Portanto, uma recessão global está longe de ser uma tábua de salvação para qualquer grupo de pessoas e nisso inclui-se os pobres também.

Por Isabel Filgueiras, do Valor Investe

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