Guerra na Ucrânia põe em xeque visão do bitcoin como ‘ouro digital’

Especialistas analisam o movimento de investidores que estariam recorrendo à criptomoeda em momentos de incertezas

(Foto: Art Rachen/Unsplash)
(Foto: Art Rachen/Unsplash)

Assim como diz o ditado “nem tudo que reluz é ouro”, no mercado financeiro, nem todo ativo que possui semelhanças com o metal amarelo deve ser considerado um ativo de segurança. Há entre analistas a percepção de que o bitcoin vem assumindo um papel de porto seguro em meio a períodos de incerteza e instabilidade, função equivalente ao do ouro. O que significa que investidores estariam recorrendo à criptomoeda em momentos de mau agouro. O conflito entre Rússia e Ucrânia e o aperto monetário pelos mais importantes bancos centrais do planeta, no entanto, vêm colocando em dúvida a máxima, mostrando que ainda é cedo para tratar o criptoativo como um “ouro digital”.

“O bitcoin ainda é uma tecnologia relativamente jovem e um ativo bastante volátil. Também não tem um papel particularmente grande, se considerar o tamanho dos mercados globais”, diz John Laforge, chefe de estratégia de ativos reais do Wells Fargo. “Com US$ 800 bilhões em valor de mercado, o bitcoin é do tamanho de uma grande empresa do S&P 500. Acredito que a classe desses ativos é promissora, mas ainda parece cedo para declará-los como um ativos de refúgios.”

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Para Rodrigo Sgavioli, chefe de alocação e fundos da XP Research, o bitcoin é um investimento alternativo, um pouco mais descolado de tudo que se tinha no mercado até sua chegada. “Mas de um tempo para cá, a correlação das criptomoedas, mais especificamente do bitcoin, com o mercado de risco tradicional aumentou. Ou seja, a renda variável vai mal, o bitcoin também vai mal. E isso não é característica de ativo de proteção”, afirma.

Ativos considerados porto seguro ou de proteção são aqueles a que o investidor recorre quando há alguma instabilidade, seja econômica, política ou mesmo geopolítica. O ouro é um dos principais ativos que se enquadram nessa categoria porque é utilizado como reserva de valor há milhares de anos e chegou a ser adotado como o padrão entre as trocas a partir do século 19. Ainda que o padrão ouro tenha perdido vigor na Primeira Guerra Mundial, o metal amarelo continuou exercendo um papel importante no sistema financeiro.

Hoje, além do ouro, o dólar serve como um ativo de segurança. Daí ambos terem sido muito procurados recentemente, durante a pandemia, após a sinalização do aperto monetário pelo Federal Reserve (Fed) e também nos momentos de recrudescimento do conflito entre Rússia e Ucrânia. O índice DXY, por exemplo, que mede o peso do dólar americano ante outras seis moedas de mercados desenvolvidos (como euro, libra e iene), subiu 2,44% desde o começo do ano, quando os temores pelo aperto monetário do Fed começaram a crescer, até o dia 20 de março. No mesmo período, o ouro avançou 4,80%. Já o bitcoin recuou 10,8%.

O paralelo do bitcoin com o ouro nasce da ideia de que, assim como o metal, a criptomoeda tem a sua oferta limitada. Isso porque o máximo de circulação da criptomoeda é de 21 milhões de bitcoins. Hoje estima-se que cerca de 90% dessas moedas já foram mineradas (foram registradas e estão em circulação).

Laforge, do Wells Fargo, lembra ainda que “tanto o ouro quanto o bitcoin são ativos que pertencem ao portador, o que significa que não são responsabilidade de ninguém”. “Essa capacidade de manter o próprio bem, em grande parte livre de confisco, é rara no mundo de hoje”, segundo ele.

Mas se há semelhanças, também há diferenças. No aspecto positivo para a criptomoeda, o benefício vem justamente pelo fato de não ocupar um espaço físico e poder ser transacionado de maneira fácil, extrapolando fronteiras rapidamente. Por outro lado, o ouro vem sendo utilizado como referência de troca nas economias há muito mais tempo, e por isso recebe mais confiança e é menos volátil. Já o bitcoin segue oscilando bastante e não é tão popularizado.

Apesar disso, André Franco, chefe de pesquisa do Mercado Bitcoin, lembra que a criptomoeda existe há quase 15 anos e nesse ínterim já cresceu muito e continua se expandindo. “Hoje o ouro tem um valor de mercado estimado em cerca de US$ 12 trilhões, enquanto o bitcoin se aproxima de US$ 1 trilhão. É bem menos, mas o ouro é utilizado como reserva de valor há muito mais tempo”, diz. “Quando você olha o perfil de quem tem bitcoin hoje, a maioria das pessoas é jovem, portanto uma mudança geracional deve evoluir a narrativa que há por trás daquilo que se confia como reserva de valor.”

Por enquanto, os criptoativos permanecem em um espaço de incerteza e desconhecimento para grandes empresas do setor financeiro. Bancos grandes e renomados, como é o caso do alemão Commerzbank, não têm analistas que acompanhem o desempenho do bitcoin. Já o Goldman Sachs executou a primeira transação de cripto de balcão nesta semana. Os próprios bancos centrais ainda estão em discussão sobre como lidar com a moeda.

Mas se ainda há desconhecimento sobre o tema e a criptomoeda não tem servido como refúgio ideal para o investidor diante de instabilidades, o próprio conflito atual entre Rússia e Ucrânia tem mostrado que pode impulsionar o processo de expansão do bitcoin e do sistema de criptoativos.

“Logo após a invasão russa na Ucrânia, percebemos que o volume de compra de bitcoin na moeda ucraniana subiu 79%, o que sugere que os comerciantes realmente estavam migrando para a criptomoeda como uma proteção contra a incerteza do mercado”, disse Clara Medalie, chefe de pesquisa da Kaiko, uma agência de pesquisa em criptomoedas. “Para o rublo, os volumes de comércio atingiram recordes históricos na semana retrasada, mas desde que as sanções foram aplicadas, os cartões de crédito russos não funcionam mais, e vimos uma queda acentuada nos volumes. Isso sugere que será cada vez mais difícil para os russos acessarem as criptomoedas.”

Ainda que não tenha uma total independência do tradicional sistema financeiro global, a criptomoeda, uma vez comprada, tem fácil transferência e pode ultrapassar barreiras, explica Franco, do Mercado Bitcoin. “Quando você olha para o atual conflito, boa parte das doações para a Ucrânia foi feita por meio desses ativos”, diz. “Também teve um momento na guerra em que cresceu o número de endereços na Rússia com mais de mil bitcoins, isso levantou a hipótese de que alguns oligarcas russos teriam comprado essas moedas para fugir das sanções e ter um dinheiro que não fosse confiscado”, afirma.

Na avaliação de Laforge, do Wells Fargo, é essa busca por tentar contornar confiscos, sanção seriamente adotada na crise atual, que deve impulsionar a criptomoeda. “Ter bitcoins tem suas vantagens para qualquer pessoa ou país que queira evitar ataques e negação de serviços financeiros”, diz. “Mas isso deve crescer só no longo prazo porque a experiência do consumidor precisa melhorar. Armazenar chaves privadas, por exemplo, é complexo para uma pessoa comum. Pode ser uma forma forte de segurança, mas se os consumidores não puderem confiar em si mesmos para armazenar suas chaves privadas corretamente, pode levar algum tempo até que o bitcoin seja amplamente adotado e se torne ativo de refúgio.”

 

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