Como a influenciadora Julia Petit está tentando construir a maior marca digital de cosméticos
Pioneira na criação de conteúdo on-line, ela está à frente da Sallve, empresa com 140 funcionários, 25 produtos lançados e mais de 765 mil seguidores no Instagram
Quem se vê diante de Julia Petit talvez tenha dificuldade em acreditar nos seus 50 anos recém-feitos em 23 de junho.
Tudo em Petit emana jovialidade: as 16 tatuagens espalhadas pelo corpo (ou mais, já não se sabe), os longos cabelos tingidos de ruivo, a calça jeans com aplicação de pedras coloridas. Mas, em pleno 2022, com debates crescentes sobre preconceito de idade, cabe perguntar: que cara tem uma mulher de 50 anos?
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“Não dá mais para saber. Essa é a época em que a gente vive: tudo é muito mais fluido. É uma época boa”, opina.
Foi aos 46 anos que Petit deu início a um novo ciclo como “chief creative officer” (CCO, ou diretora de criação) da Sallve, marca de cosméticos nativa digital que fundou em 2018 com Daniel Wjuniski, Marcia Netto e Juliana Shor. Hoje, a empresa soma 140 funcionários, 25 produtos lançados e mais de 765 mil seguidores na rede social Instagram.
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Foram realizadas três rodadas de investimento, que captaram: R$ 10 milhões, em 2018; R$ 60 milhões, em 2019; e R$ 110 milhões, em 2021. A Sallve não abre faturamento, mas informa ter crescido quatro vezes entre 2019 e 2020, e três vezes de 2020 para 2021.
O plano é se tornar a maior marca digital de cosméticos do Brasil em dez anos. “Eu amo essas frases apoteóticas”, ri. No caminho até lá, a Sallve aposta naquilo que, segundo Petit, é o primeiro e grande diferencial da marca: a relação com sua comunidade de consumidores. Da formulação dos produtos até a definição de preços, a comunidade é ouvida em todas as etapas, o que faz dela uma espécie de quarta sócia da empresa (Juliana Shor deixou o quadro societário em 2020).
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Esse diálogo se dá por duas vias principais. A primeira é a escuta permanente do que é dito nas redes sociais.
A segunda é o que a marca chama de “colabs”: reuniões semanais com membros da comunidade da Sallve ou de criadores de conteúdo convidados para entender suas necessidades e opiniões sobre diversos temas, como hábitos de consumo. Para Petit, o segredo está no uso que é feito desses insumos: “Além de ouvir a comunidade, o ponto forte da Sallve é entender: o que é isso que eles precisam? Como é isso de um jeito que nunca foi feito? E o que eles não estão conseguindo verbalizar?”.
Na posição de CCO, Petit participa de todas as frentes. Ainda que haja uma equipe dedicada à tarefa, diz “morar em rede social” – “Não consigo parar de fazer isso”, justifica-se. Acompanha também as colabs e supervisiona o desenvolvimento dos produtos. A pesquisa e a formulação são internas, cabendo à empresa terceirizada Fareva a fabricação.
Ela só sai de cena nas colabs de teste: “Depois que o produto ficou do jeito que a gente queria internamente, escolhemos pessoas da comunidade para testar. Eu não participo dessa reunião, porque não quero que fiquem sem jeito para criticar”. Na etapa final, Petit se junta à equipe de criação para pensar a comunicação. “Meu arco vai do nascimento do produto até a embalagem na farmácia”, resume. “E ainda tem toda a parte do conselho de investidores da empresa. Por isso, digo: meu projeto paralelo é dormir”, brinca.
Desde 2020, a Sallve ocupa um prédio de três andares no bairro paulistano de Pinheiros que inclui o laboratório e a única loja própria. Do outro lado da rua, a menos de 100 metros, está o Futuro Refeitório, local escolhido para esta conversa na manhã de uma sexta-feira. “A gente vem aqui direto. É literalmente o refeitório da Sallve”, diz, em uma brincadeira com o nome do restaurante. Suas escolhas incluem suco de laranja, café coado (dois, com açúcar), queijo quente e bolo de banana. Não tem restrições alimentares: “Eu como o que é de comer”.
Conta que, vira e mexe, alguém pede explicações sobre seu nome: “As pessoas me perguntam se Julia Petit é nome artístico. Não é. Seria incrível se fosse”, diverte-se. É preciso esclarecer: Julia Petit, na verdade, é Julia Mendonça Petit. Mendonça é herança da mãe, Inês. Já o Petit, quem é da velha-guarda da comunicação reconhece: vem do publicitário e artista plástico catalão Francesc Petit, o “P” da agência de publicidade DPZ, pai de Julia. O núcleo familiar se completa com as irmãs mais velhas, Isabel e Luiza.
E para os Mendonça Petit, comida é coisa séria. Dona Inês escreveu até um livro, “Cozinha tradicional catalã”, com receitas que Petit, a filha, carrega consigo. “Só para você entender a intensidade, a última conversa que tive com minha mãe antes dela morrer [em 1º de janeiro de 2017, de parada cardíaca] foi sobre comida. Falamos sobre o pernil que eu ia preparar no Ano-Novo. Tem um pernil clássico dela, ela faz buraquinhos e coloca alho cru, depois champagne, laranja… Vou passar a receita. Eu disse para ela que queria usar vinho de sobremesa em vez de champagne.”
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Nascida na cidade de São Paulo, Petit cresceu tendo na DPZ um parque de diversões: “Quando eu era criança, queria trabalhar no almoxarifado. Eu ia para a agência e ficava maluca, queria organizar as canetas, os bloquinhos. Aquele prédio era uma delícia para mim”. Aos 15 anos, começou como estagiária, passando por todos os departamentos para ver onde se encaixava. No fim, nunca se formou em faculdade; aprendeu mesmo com a prática. E o que ficou de influência de seu Francesc? “Tudo. Tudo. É tudo dele”, crava.
Foi no estúdio fotográfico da DPZ que a paixão por moda e beleza aflorou. Nos anos 1980, valia ouro o acesso a todo tipo de revista importada à disposição na agência. Havia ainda o convívio com maquiadores e cabeleireiros que frequentavam o estúdio, permitindo a Petit ir direto à fonte: “Eu sou muito curiosa, gosto de saber como as coisas são feitas. Então, eu ficava: como faz essa maquiagem? Que produto você usou nesse cabelo?”, conta.
A proximidade com o mundo da publicidade ajudou a alavancar também uma carreira como modelo. Desde cedo, era fotografada pelos amigos do pai: “[J.R.] Duran, [Luiz] Tripolli, todo mundo vivia lá em casa. Eu sempre fui uma criança estranha, não tinha cara de modelo. Mas o que era legal nos anos 1980 é que ninguém queria ser bonito, a gente fazia esforço para ser estranho”. Com o primeiro book – obra da irmã Luiza, fotógrafa -, começou a pegar trabalhos. Mas seu Francesc, preocupado com a filha adolescente, logo proibiu viagens internacionais, o que restringiu as possibilidades.
Petit trabalhou na DPZ até 1994, quando, aos 22 anos, deu à luz Nina, sua única filha. Criou a menina sozinha, com a ajuda dos pais. Durante a gravidez, comprou a casa vizinha deles, no bairro do Pacaembu, e mandou abrir uma porta no muro para que Nina pudesse circular livremente. Avalia que, de lá para cá, o debate sobre mãe solo ganhou novos contornos: “Não existia a naturalidade que tem hoje. É engraçado como em tão pouco tempo as coisas mudam tanto. Que bom”.
Atualmente, Nina mora na Espanha, assim como Isabel e Luiza. Com o falecimento dos pais – seu Francesc partiu em 6 de setembro de 2013, vítima de câncer -, Petit decidiu mudar-se para a casa que era deles, submetendo-a a uma baita reforma. É lá onde mora com o marido, Tiago Gass, mas quem manda são os cinco cachorros e oito gatos.
Em 1996, Petit voltou à DPZ a pedido do pai para cuidar da área de som em rádio e TV, cobrindo a saída de João Marcello Bôscoli. Lá ficou até 2000, quando um amigo a convidou para abrir uma produtora de som voltada à publicidade. Nascia a LudwigVan, ativa até 2008. Em seguida, veio a Menina Produtora, fechada em 2015. O nome, escolhido por Petit, foi para marcar posição em um mercado majoritariamente masculino.
Ainda nos tempos de publicitária, Petit foi ganhando espaço nas colunas sociais, firmando-se como referência de estilo. O fato de namorar o músico Beto Lee, filho de Rita Lee e Roberto de Carvalho, adicionava ao interesse da imprensa. Na nomenclatura dos anos 2000, Petit era “trendsetter”, “personalidade”, “it girl”. Ela acha tudo isso um sarro. “Era a cultura da época. Foi o boom das revistas de celebridade, e eles precisavam descobrir novas caras. Eu nunca achei ruim. É divertido, uma fantasia engraçada”, explica. Ela e Lee seguem amigos.
Presença VIP nos lugares mais badalados, cheia de amigos fashionistas e sempre de olho nas tendências, Petit recebeu com surpresa o convite para assinar uma coluna de moda na revista “Contigo!”, em 2005. Tomou tanto gosto pela coisa que, encerrado o contrato com a publicação, sugeriu ao portal iG a criação de um blog. Mas ninguém entendeu bem qual era a ideia. “Na época, as pessoas tinham blog no sentido de diário, e eu queria fazer postagens sobre moda, beleza, estilo de vida. Demorou pra caramba para botar o blog no ar. E aí, quando botamos, o negócio cresceu muito rápido”, lembra.
Cresceu tão rápido que, em três meses, Petit teve de contratar equipe porque não estava dando conta de se desdobrar entre o blog e a produtora de som. Logo se tornou inevitável criar uma plataforma própria: o Petiscos. Lançado em 2008, o portal atingia uma média de 1 milhão de visitas mensais e chegou a contar com 30 funcionários. Para facilitar a logística, a redação ficava no mesmo imóvel que abrigava a Menina Produtora.
Uma peça-chave para a audiência do Petiscos vinha diretamente das mãos de Petit: seus tutoriais de cabelo e maquiagem em vídeo, que ensinavam ao público os truques aprendidos ao longo de uma vida inteira de convivência com pessoas da área – e também com dona Inês e seu Francesc. “Minha mãe sempre costurou, fez a própria unha. Essa parte manual vem 100% dela. Já o olhar mais agudo para a moda vem do meu pai. A pessoa que mais gostava de ver os looks que eu montava para uma festa era ele”, recorda.
Foram muitos os frutos trazidos pelo sucesso do Petiscos. Como a apresentação dos programas de televisão “Base Aliada” e “Vamos Combinar Seu Estilo”, ambos no canal GNT, em 2011. E a parceria com a marca de sapatos Melissa para desenvolver uma estampa, em 2012. Mas a cereja do bolo foi a assinatura de uma coleção global de maquiagem para a canadense M.A.C., tornando-a a primeira mulher brasileira convidada para a missão.
De início, Petit achou que fosse pegadinha: “Comecei a rir quando disseram que queriam fazer uma coleção comigo”, lembra. Desenvolvida em segredo ao longo de quase três anos, a linha de produtos como batons, sombras e blush foi lançada em março de 2015. Esgotou em dias: “Eu lembro até hoje: lançamos numa terça-feira. Quem esperou até sábado para comprar nas lojas já não achou quase nada. Foi surreal”.
Não é exagero afirmar que a experiência com a M.A.C. serviu de embrião para a Sallve. As opiniões e os desejos da comunidade do Petiscos guiaram suas decisões, em moldes similares ao que acontece hoje: “Fiquei meio desesperada, porque eu podia fazer o que quisesse. Pensei: já sei. Vou pegar todas as dúvidas que as leitoras me mandam pela caixa de comentários, tudo o que elas me contam, e montar a
coleção em volta disso”, explica.
Petit diz ter se sentido tão realizada que, quando começou a considerar o fim do Petiscos e a tomada de novos rumos, descartou de cara uma marca própria de maquiagem. Atenta às tendências, viu no skincare um caminho natural: “Naquela época eu já tinha a tese de que as pessoas olhariam para a pele. E isso se comprovou”, fala. Também foi ganhando força seu interesse pelo mercado de capital de risco, estimulada pela experiência dos amigos Ana Luiza McLaren e Tiê Lima, fundadores do brechó on-line Enjoei.
O encerramento do portal levou dois anos e algumas sessões de terapia: “Precisava descobrir quem eu era sem o Petiscos”, diz. Pesou na decisão o desafio crescente de monetizar conteúdo on-line: “Até o advento dos algoritmos das redes sociais, eu entendi que dava. Dali para frente, ruiu tudo. É difícil para as pessoas entenderem que jornalismo de qualidade custa caro, e hoje as plataformas absorvem toda a verba publicitária dos clientes. Não tem como concorrer. A gente errou no começo dos anos 1990, quando acreditamos na internet grátis”, avalia.
A última atualização do portal foi em dezembro de 2017, mas Petit optou por mantê-lo no ar. Os tutoriais de beleza estão em seu canal no YouTube, que desde 2009 contabiliza mais de 53 milhões de visualizações. Há ainda o Petit Comitê, também no YouTube, criado em 2015 para que pudesse falar de assuntos como cultura e política. Sente falta de ter um espaço para expressar suas opiniões? “Não”, responde. “No nível de desordem de informação que existe hoje, acho que não conseguiria ajudar ninguém. Muita dissonância, muita cacofonia.”
O ano de 2018 foi dedicado a um sabático, principalmente à reforma da casa. Em paralelo, Petit começou uma “turnê de reconhecimento” de fornecedores, embalagens, fragrâncias para seu projeto solo em skincare. Até que o telefone tocou. Do outro lado da linha, Mariana Inbar, editora do Petiscos (hoje no blog da Sallve), perguntava se podia recomendá-la a um grupo de pessoas à procura de alguém para criar conteúdo em uma nova marca de cosméticos. “Manda me ligar. Deixa eu ver quem é esse povo aí”, respondeu.
Deu match. (Match, não. Deu liga. Petit é contra o uso desnecessário de termos em inglês, ainda que seja chief creative officer”.) Já na primeira conversa ficou claro que os projetos se complementavam, e foi assim que Petit se tornou sócia, cofundadora e CCO da Sallve. Trouxe na bagagem um olhar sobre o setor apurado ao longo de anos no Petiscos: “Eu sabia quais eram os espaços que existiam e ainda existem no mercado. Produtos que não têm no Brasil ou que não atendem a um perfil específico, como a geração Z e os millennials”.
Também há muito de Petit na linguagem da Sallve. Conta que, desde o blog no iG, a intenção é falar diretamente ao consumidor final para explicar os porquês de produtos, comportamentos e tendências. Vê com desconfiança discursos que colocam skincare como sinônimo de autocuidado: “Autocuidado tem a ver com saúde mental. Tem que ter o cuidado de não usar isso para vender produto. É uma linha muito tênue”. Já o slogan da Sallve, “Viva sua pele”, reflete uma antiga crença sua: a importância de se olhar com mais tolerância. “Os tutoriais no Petiscos não eram só para ensinar um delineado. Eu queria que as pessoas sentassem na frente do espelho, se divertissem um pouco, entendessem seus traços”, diz.
E são muitas as pessoas atentas ao que Petit tem a dizer. Assim que anunciou a criação da Sallve em suas redes sociais, o Instagram da marca ganhou 30 mil seguidores. Hoje, ela comemora a queda de 80% para 9% no número de consumidores que chegam até a Sallve por meio de seu nome. “Isso é resultado de muita dedicação. O tamanho do projeto que temos para a empresa é muito maior do que a minha comunidade na internet”, explica. Nisso, a ida para farmácias da rede RaiaDrogasil, no fim de 2021, ajudou. O plano é estar em mais de 500 lojas de todo o país até o segundo semestre deste ano.
A própria escolha pelas farmácias partiu da escuta à comunidade: “A gente sabia que precisava abrir um canal, mas podia ser via supermercados ou franquias, por exemplo. Foi em uma colab que descobrimos uma coisa emocional das pessoas com a farmácia. É onde se sentem à vontade”. Mas o diálogo com a comunidade passa também por conversas difíceis. Em outubro de 2019, Petit começou a receber mensagens diretas em seu Instagram com dúvidas a respeito do esfoliante enzimático. Perguntavam se era normal que a embalagem estufasse. Não era. Deuse a necessidade de um recall.
O comunicado oficial fala em “presença de bactérias acima dos limites permitidos”. Segundo Petit, o episódio desencadeou uma série de mudanças internas na empresa, incluindo a transferência para a atual fabricante Fareva. Em sua avaliação, foi o maior desafio de sua carreira: “Foi um desafio em cada área que você puder imaginar. Foi um teste de resiliência, de equipe, de sócios, do conselho de investidores, de tudo”. O produto voltou ao mercado em junho de 2020.
Para Petit, é natural que, no futuro, a Sallve explore outros segmentos além do skincare. E ela, que vive de ciclos, diz que tem na marca um projeto de longo prazo: “Provavelmente, vou criar novos projetos dentro da própria Sallve para suprir a minha eterna necessidade de novidade”. Aos 50 anos, Julia Petit está só começando.