Bolsa vira oportunidade com Arcabouço Fiscal?

Gestores avaliam a nova regra fiscal apresentada pela equipe econômica do governo Lula

Painel mostra desempenho de ações na B3. Foto: Cris Faga/NurPhoto/Reuters
Painel mostra desempenho de ações na B3. Foto: Cris Faga/NurPhoto/Reuters

A apresentação do novo plano fiscal pelo ministro da Economia, Fernando Haddad, pode ser um gatilho poderoso para a bolsa brasileira, especialmente se o equacionamento das contas públicas andar em paralelo com a reforma tributária. Segundo Alexander Steinberg, sócio-fundador da gestora de ações Skade Capital, a partir do momento que o arcabouço traga uma trajetória de dívida descendente já é suficiente para os investidores fazerem contas e buscar valor na renda variável. “Se a convergência for rápida ou devagar, está bom, mas que seja descendente. Todo mundo está esperando isso, inclusive o Banco Central.”

Na sessão desta quinta-feira (30), a bolsa brasileira sobe na esteira do projeto do governo que chega ao Congresso para criar um mecanismo que substitua o antigo teto de gastos.

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Com projeções de inflação ainda escapando da meta, se o ajuste não vier pelo controle das contas públicas, virá pela redução da atividade, o que permitirá ao BC cortar os juros, ou seja, o relaxamento “vem pelo motivo certo ou errado”, afirma Eduardo Cortez, sócio-fundador da Skade.

Os gestores veem verdadeiras barganhas na bolsa, de companhias que tiveram que se adaptar à rápida mudança de cenário, com a Selic saindo de 2% durante a pandemia de covid-19, para os 13,75% atuais.

“Há muitos exemplos na bolsa, cujos diretores financeiros fizeram um trabalho sensacional de redução da dívida, repactuação e rolagens para garantir a liquidez da empresa, e muitas das nossas investidas vão colher os frutos de uma situação de caixa mais confortável, ninguém abre mão disso”, prossegue Cortez. “Mesmo que o crescimento não seja super acelerado, uma eventual redução da taxa de juros, senão no segundo semestre de 2023, no primeiro de 2024, vai ter um impacto forte em algumas companhias que já fizeram tudo na gestão de passivos.”

‘Mais aposta do que regra robusta’

O novo regime fiscal apresentado pelo governo é “mais uma aposta em um cenário macroeconômico favorável” do que uma regra fiscal robusta, na avaliação de Carlos Kawall, sócio e fundador da Oriz Partners e ex-secretário do Tesouro Nacional.

“É uma aposta que se viabilizaria se a gente tivesse um comportamento da receita muito favorável nos próximos anos, que poderia vir de maior crescimento, commodities, uma inflação de equilíbrio mais elevada – o que não é desejável -, mas isso é diferente de você ter uma regra que lhe permite projetar para frente”, afirma.

Conseguir estabelecer trajetórias fiscais viáveis à frente é importante, segundo Kawall, porque isso é antecipado no tempo e os “frutos” são colhidos no presente, como na melhora das expectativas de crescimento, na questão da inflação elevada e na apreciação do câmbio.

Como entre os agentes de mercado havia expectativas muito pessimistas e outras de que a nova regra seria razoável, será possível ver “algum alívio de curto prazo” nos ativos, que estavam “muito negativos” e com “preços muito baratos”, aponta Kawall. “Mas não acredito que, nos termos da proposta, isso gere uma reação positiva sustentada e consistente do mercado ao longo do tempo. Acho que tem muitas dúvidas, incertezas”, diz.

Do ponto de vista conceitual, ele afirma que “a regra é um retrocesso”. “A gente já viu que funciona mal a ideia de ter uma regra que fica restrita ao superávit primário, por causa do caráter pró-cíclico que tem com expansão de receita”, diz.

O arcabouço apresentado pelo governo prevê um compromisso de trajetória do resultado primário (receitas menos despesas, exceto gastos com juros) até 2026 – neutra em 2024 e superávits de 0,5% e 1% do PIB, respectivamente, nos anos seguintes -, com uma banda variável de tolerância de 0,25% para cima ou para baixo.

“Eu torcia, achava que poderia ter na regra algum objetivo para a dívida/PIB, mas foi descartado e acho que isso deixa a regra mais fora de sintonia das melhores práticas lá fora”, diz Kawall.

Do ponto de vista de regra para os gastos, o governo apresentou um limite para o crescimento real das despesas de 0,6% a 2,5%, a depender do comportamento das receitas, o que o ministro Haddad apresentou como componente anticíclico do arcabouço.

Para Kawall, no entanto, os parâmetros são assimétricos e a regra acaba tendo um “viés pró-cíclico”.

“Essa banda de variação é bem acima daquilo que se imaginava. A meu ver, fica uma sinalização de que o gasto, no fundo, vai crescer continuamente. No pior cenário para a atividade econômica, as despesas podem avançar 0,6%, mas o limite superior no cenário mais positivo é muito elevado. Parece anticíclico no momento de vacas magras, mas procíclico quando tem uma situação favorável”, afirma.

Kawall diz não ver problemas em o governo ter estabelecido uma banda, e não uma meta única, para o resultado primário, mas também aponta assimetrias. “Se o resultado ficar acima do limite superior da banda, supondo que houve uma arrecadação extraordinária, isso poderá ir para gasto com investimentos. Mas se o resultado ficar abaixo da banda, jogo para o ano que vem e vejo como corrigir isso no ano seguinte. É um tratamento assimétrico”, afirma.

Ao ser assimétrica e procíclica, a nova regra fiscal repete vícios da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), diz Kawall. Mas a nova regra tem uma coisa pior que a LRF, segundo ele, que é a ideia de que a meta de superávit primário, em tese, não é uma regra para valer. “Com todos os problemas da LRF, foi muito importante que, quando vinha alguém querendo gastar mais, você dizia: não dá, tem regra, está na lei”, conta o ex-secretário do Tesouro.

“Abandonamos o teto de gastos, voltamos com um arcabouço que não estabelece nenhum alvo de dívida/PIB e usamos uma regra que tem como medida de desempenho fiscal uma meta de primário que tampouco é restritiva, porque se não alcançar, joga para o ano seguinte”, continua.

De acordo com o regime anunciado por Haddad, se a meta de resultado primário ficar abaixo da banda, a autorização para gastar 70% do crescimento das receitas observadas cai para 50%, o que, na avaliação de Kawall, pode gerar outros problemas.

Ao mesmo tempo em que apresenta a nova regra fiscal, o governo também sinaliza para políticas públicas que devem aumentar o gasto obrigatório, aponta o economista, citando a política de valorização do salário mínimo, o aumento de salário dos servidores e a recomposição de despesas com saúde e educação.

“Vai ter dificuldade de cumprir com isso se a receita não for robusta. Vamos supor que a meta não foi cumprida no primeiro ano. Vai chegar no segundo ano tendo de ser mais duro e isso vai conflitar com despesas obrigatórias que vão estar crescendo obrigatoriamente”, exemplifica.

Nesse sentido, Kawall questiona a “consistência” da regra proposta sem, por exemplo, um aumento de tributos ou alíquotas de impostos, algo que o ministro Haddad assegurou mais cedo que não deve ocorrer e que Kawall também diz ver pouca disposição para aceitação por parte do Congresso e da sociedade.

“Tenho muita dúvida em relação às projeções apresentadas. Parece que os parâmetros de crescimento, nível de juros, para ter uma trajetória de dívida/PIB que quase não se mexe, fica em 75%, 76% do PIB ou até cai, se o juro for menor, são otimistas”, diz Kawall.

‘Bolsa como oportunidade tática’

A chegada da proposta de nova regra fiscal ao Congresso nesta quinta-feira realimentou previsões de que a Selic possa cair dos 13,75% ao ano atuais já neste ano, fruto de uma possível convergência da inflação para a meta. Abriu-se assim espaço para o alongamento de estratégias ligadas a juros e algumas posições táticas em bolsa, segundo Ruy Alves, gestor de fundos macro global da Kinea Investimentos.

“A gente continua achando que o crédito vai ser mais restritivo, o crescimento difícil, mas falando em bolsa, se começa a ceder a parte média e longa da curva de juros, via uma inflação mais convergente e um Arcabouço Fiscal crível, isso sim beneficia a bolsa”, afirma o gestor. Com resgates nos fundos de ações e a recente saída dos estrangeiros, que vinham balanceando as saídas locais, o lado técnico parece ter ficado mais favorável também, porque os preços das ações refletem uma percepção muito pessimista.

Nos contratos de juros futuros, as projeções vinham sendo reduzidas para os próximos meses, mas para 2024 já recuperam terreno, sinalizando que a queda parece não ser sustentável, diz Alves. Dentro da Kinea, a expectativa é que a inflação seja convergente à meta, por isso a decisão foi alongar as posições aplicadas (apostando na queda) em taxas para esse período em que os agentes financeiros embutem novas altas.

“O Brasil saiu de juros reais de -5% para +8% num período de menos de dois anos e isso começa a afetar a economia. E esse instrumento é como pescar com dinamite, quem está jogando dinamite não sabe quanto tem que jogar. Primeiro, morrem os peixes pequenos, depois as tainhas e atuns e quando morre a baleia você percebe que jogou demais”, compara Alves.

Não só a economia brasileira tem sentido os efeitos da desaceleração, mas também o mundo desenvolvido está em pleno “processo de pescaria com dinamite”. O gestor cita problemas nos fundos de pensão no Reino Unido, a quebra do americano Silicon Valley Bank (SVB), o resgate do First Republic e a compra apressada do Credit Suisse pelo UBS como fenômenos decorrentes de condições financeiras mais apertadas, em que se “mata coisas que não se esperava”. No Brasil, a fatalidade é o endividamento das famílias que vai abalar o consumo em 2023.

Lá fora, o gestor ainda não vê espaço para as ações se valorizarem, porque a tendência é que as projeções de lucros das companhias sejam revisadas para baixo, com o freio econômico que se desenha. “Nem acho que haja uma crise bancária aguda, que vá quebrar um banco por semana, mas passa a ser crônica porque [o Federal Reserve, o BC americano] está tirando depósitos do sistema, o ‘quantitative tightening’ faz isso e gradualmente e vai apertar o crédito, cercear as emissões [de dívida].”

No Brasil, o cenário de juros reais que “parecem uma miragem, que não podem existir na prática, vão se desfazer por bem ou por mal”, prossegue Alves. “Sem superávit primário e sem crescimento, não há como estabilizar a dívida pública.” Significa dizer que se o plano fiscal não tiver credibilidade para substituir o teto de gastos, o prêmio gordo do juro real se converte em inflação.

Para a pessoa física, ter posições em Notas do Tesouro Nacional série B (NTN-B), que asseguram a correção pelo IPCA mais 6%, nos preços atuais, é “um presente para o rentista”, diz o gestor. “Para os fundos são outros quinhentos por causa da marcação a mercado, mas para quem pode, pega e carrega isso.”

‘Lento, mas, ao longo do tempo, vai ocorrendo’

A proposta de Arcabouço Fiscal anunciada nesta quinta-feira pelo governo “é boa” por colocar, nos momentos em que a economia está em crescimento, o avanço da despesa sobe abaixo do crescimento da receita. É o que aponta o economista-chefe da JGP, Fernando Rocha, em uma avaliação preliminar do projeto divulgado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. “Essa é a parte positiva. É um ajuste lento, mas que, ao longo do tempo, vai ocorrendo.”

De acordo com Rocha, a reação inicial dos ativos brasileiros à proposta foi positiva, pelo fato de haver uma regra sobre a mesa. “Claro que o diabo mora nos detalhes e precisaremos ver os pontos, como vai tramitar no Congresso etc, mas, no geral, é melhor ter essa regra do que não ter nada”, aponta o economista da JGP.

Nos cálculos de Rocha, a regra não é suficiente para estabilizador a dívida, “mas é um caminho, que precisará ser complementado com algum aumento de arrecadação ou redução de isenções tributárias, que acredito que já esteja na cabeça do governo porque as metas de resultado primário anunciadas parecem otimistas caso não haja um aumento da receita”. De acordo com o economista da JGP, as metas de resultado primário anunciadas, de zero em 2024 e de superávit de 0,5% do PIB em 2025 e de 1% em 2026, “nos parecem otimistas em mais ou menos 1% do PIB”.

Essa diferença, na avaliação de Rocha, pode vir, justamente, da diferença que o governo vai tentar achar na arrecadação. “Parece mais fácil fazer com uma redução de isenções tributárias do que com aumento da carga, porque a reforma tributária tem um princípio de neutralidade”, observa o profissional.

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