Corridas de rua passam por incertezas com alta de preços e ômicron
Patrocínio ajuda a diminuir a barreira do custo, porém participantes ficam mais seletivos
A paralisação compulsória das corridas de rua decorrente da pandemia de Covid-19 criou uma crise sem precedentes no setor, e a retomada é lenta. Até mesmo aprova mais tradicional do Brasil, a São Silvestre, sofreu uma drástica redução do número de inscritos em 2021: apenas 20 mil no ano da menor edição da fase matinal, iniciada em 2012.
O fato de que a pandemia continua, ainda que bem menos fatal, certamente contribui para isso, mas há também o fator renda. Os participantes estão mais sensíveis aos preços das inscrições e mais seletivos. “Os eventos precisam ter um sentido e um significado. Hoje há vários treinos gratuitos; as corridas estão muito caras”, diz a psicóloga Rosangela Franco, de 53 anos. Apesar da “troca de energia gostosa” que a confraternização com os colegas propicia, ela diz: “Daqui para frente, vou escolher mais em vez de participar de todas as que aparecem”.
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A corrida de rua só cresceu como negócio no Brasil a partir da evolução dos eventos. Restrita, até o fim dos anos 1990, a um pequeno público – majoritariamente masculino e bastante voltado ao desempenho -, ganhou milhões de adeptos na primeira década do novo século graças à percepção de empresas organizadoras de que poderiam alcançar mais pessoas ao acentuar o caráter participativo e de confraternização das provas. Os patrocinadores aprovaram e apoiaram essaa bordagem, que levava cada vez mais atletas amadores aos eventos.
Antes da pandemia, o setor movimentava perto de R$ 300 milhões por ano com inscrições no país, em um total de quase 5 mil eventos anuais, de acordo com a Ticket Agora, maior plataforma brasileira de cadastro de atletas. Estima-se que 2 milhões de corredores tenham participado de uma ou mais provas em 2019. Pesquisa feita no primeiro semestre de 2021 pelo mesmo site indicou que 34% dos corredores brasileiros recebem de um a três salários mínimos; e 27%, de três a seis.
O patrocínio ajuda a diminuir a barreira do custo. A Centauro começou recentemente a promover uma série de atividades gratuitas no parque Villa-Lobos, na zona oeste de São Paulo. A empresa patrocinou uma prova para mil pessoas em 11 de dezembro com inscrição gratuita. “A Centauro já atuava, de forma tímida, emparcerias com as principais promotoras de corrida, pois utilizávamos nossas lojas como ponto de retirada de kits. Desta vez, atuamos em toda a jornada, desde a promoção até a execução da corrida”, afirma Gustavo Milo Marasco, gerente executivo de marketing da rede de lojas de artigos esportivos.
O Santander é desde 2018 patrocinador principal do Track&Field Run Series. Patricia Audi, vice-presidente de comunicação, marketing, relações institucionais e sustentabilidade do banco, ela mesma uma corredora que já completou cinco maratonas, diz: “Sabemos como funciona: às vezes as pessoas precisam de provas para se motivar e continuar a treinar”.
Patrocinar um circuito inteiro permite ao Santander aparecer em mais de 50 cidades de diversas regiões do país: “Era importante que fosse, além de democrático, um esporte que pudesse levar a marca para onde atuamos”, diz Audi. No último trimestre de 2021, o Santander foi também patrocinador de circuitos por meio da Lei de Incentivo ao Esporte – com inscrições a R$ 20 – e patrocinou a Corrida da Esperança (inscrições a R$ 35), evento do governo estadual de São Paulo.
Por outro lado, as perspectivas de curto prazo não são animadoras para as empresas organizadoras. Na melhor das hipóteses, se não houver novas restrições, para a maioria dos principais promotores o ano de 2022 será, basicamente, destinado ao cumprimento de obrigações assumidas em 2019 e no começo de 2020, mas com preços mais altos de produtos e serviços e muito menos dinheiro em caixa.
“Para mim, o mercado se estabilizará em 2024”, diz o empresário Thadeus Kassabian, dono da Yescom, organizadora da Maratona Internacional de São Paulo e da Corrida Mulher-Maravilha e contratada pela Fundação Cásper Líbero para a São Silvestre, cuja 96ª edição foi realizada em 31 de dezembro de 2021, dois anos após a 95ª, com inscrições a R$ 210, que ficaram mais de 11 meses abertas – e, mesmo assim, 15 mil das 35 mil vagas não foram preenchidas.
A Yescom adiou a maratona paulistana de 2020 (cujas inscrições começaram em maio de 2019) para 10 de abril de 2022 (se o poder público permitir). Para a empresa, diz Kassabian, a vantagem nesse caso é que, como a prova estava próxima quando a pandemia foi deflagrada, todo o material já estava confeccionado.
O problema são as corridas para as quais as inscrições estavam abertas, mas quase nada tinha sido comprado. “Eventos assim são os mais difíceis. Mantivemos o preço e vamos ter de absorver esse prejuízo”, afirma o empresário. “De março de 2021 para novembro de 2021, uma camiseta de poliamida de R$ 16 passou para R$ 26. Caixa de água [com 48 copos] em março: R$ 12,50; agora, no melhor preço do mercado: R$ 18,50, com preço médio de R$ 21,50. Medalha de boa qualidade em março: R$ 5,50; hoje, R$ 7,50.”
Em razão da elevação dos preços e da insegurança que a crise sanitária ainda causa, Kassabian acredita que o número de participantes vai cair: “Acho que haverá uma diminuição significativa do público em todas as corridas em 2022 – e em 2023 também. Tenho quase certeza de que não haverá um aumento de corredores como aconteceu em um passado próximo”.
Ainda que tenha conseguido receita com desafios virtuais, nos quais o participante corre onde e quando quiser e recebe em casa o kit, a Yescom ficou mais de um ano e meio sem realizar eventos presenciais, o que a levou a cortar a equipe pela metade – atualmente são 20 pessoas.
Durante o confinamento, a corredora amadora Mia Powell Rossiter Magalhães, de 49 anos, começou a fazer ginástica funcional pelas lives e continuou a correr no quintal de sua casa. Aos poucos, com os devidos cuidados, voltou a correr nas ruas de seu bairro. Após alguns meses com muitas restrições, passou também a pedalar nas ruas.
De acordo com Paulo Carelli, sócio da Iguana, responsável pela organização da SPCity Marathon, a outra maratona paulistana, só algumas medidas governamentais surtiram grande efeito: “Duas coisas ajudaram o setor: a jornada de trabalho e o salário reduzidos – e o governo federal entrava com complementação salarial – e a lei da desobrigação de devolução das inscrições e dos ingressos. Acesso a crédito, benefício, isenção tributária: nada disso foi eficaz ou trouxe algum impacto a essa retomada”. Assim como a Yescom, a Iguana necessitou jogar a maioria de seu calendário de 2020 para 2022.
João Traven, da Spiridon, que organiza a Maratona do Rio, diz que fez muita ginástica financeira no evento que ocorreu nos dias 14 e 15 de novembro. Patrocínios para a maratona carioca foram firmados em novos termos. “Alguns contratos não estavam fechados, e eles aproveitaram para fazer um conforme o número de inscritos”, conta.
A Maratona do Rio de 2021, que empregou 40 colaboradores e 2.960 freelancers, teve redução de público: a organização divulgou número de 19.439 participantes nas provas (divididas em quatro distâncias, maratona, meia-maratona, 10 km e 5 km), e15.338 de fato as completaram; a distância maior, percorrida por 7.563 corredores em 2019, foi finalizada por 2.439 ano passado. Os inscritos em 2020 puderam transferir sua inscrição para 2021, 2022 ou 2023.
Os corredores parecem dispostos a retornar quando as condições forem mais propícias. Mesmo decidida a ser mais seletiva, a psicóloga Rosangela Franco sente falta dos eventos. Ela pretendia participar da São Silvestre, mas acabou indo à avenida Brigadeiro Luís Antônio só para apoiar os amigos. Seja nos eventos, seja em treinos sozinha, correr passou a ser parte de sua vida: “Depois da corrida, parei detomar remédio para emagrecer e a minha enxaqueca melhorou. Ela serve para tudo: quando você está triste ou alegre”.
O esporte também fez parte do “renascimento” de Gabriel Abdala, de 51 anos, gerente de marketing. Após sofrer uma depressão em 2010, ele passou a caminhar diariamente e a usar menos o carro. A atividade proporcionou economia em seus gastos e a “saída dos três dígitos” da balança. Criou a Liga dos Corredores nas redes sociais para passar informações sobre treinos e provas e “transmitir o espírito da corrida e a sua capacidade de mudar a vida das pessoas”. Abdala diz que o retorno das provas aconteceu em um momento adequado. “Tenho participado de vários eventos”, diz. O uso de máscaras é feito principalmente durante as concentrações, na largada e na chegada, conta. “Os grupos têm ficado um pouco distantes; não há tanta gente amontoada quanto antes.” Abdala chegou a engordar 10 kg em seu isolamento e, assim, decidiu fazer trilhas e trekking apenas com um amigo na serra da Cantareira, em São Paulo, e em outras áreas com menor circulação de pessoas durante a pandemia. “Em maio e junho de 2020, comecei a participar de eventos e desde agosto tenho feito corridas todas as semanas.”
Para Mia Powell, os preços já eram altos antes da pandemia. “As provas ficarão muito mais caras agora.” Ela, no entanto, vê a volta das competições como “um marco positivo para os corredores”. “Hoje eu acho muito importante a corrida pelas aúde e pela qualidade de vida. E, é claro, também pelas amizades que a gente faz”,comenta.