Bets entram na vida dos endividados e acendem alerta para disparada da inadimplência
Para especialista, problema 'não é nem uma bomba-relógio, é uma bomba que já estourou' e inadimplência pode subir
Imagine a seguinte situação: uma pessoa está inadimplente, como 72,6 milhões de brasileiros estão atualmente. Essa pessoa possui uma dívida em aberto de cerca de R$ 1 mil. Com a intenção de pagá-la, pega os R$ 100 que tem em sua conta corrente e decide usá-los nas apostas esportivas, as famosas bets. O objetivo é conseguir multiplicar o dinheiro e assim conseguir quitar a sua dívida.
Dados da Serasa Experian mostram que isso é algo que já está acontecendo no país. De acordo com um levantamento divulgado pelo birô de crédito, 34% dos inadimplentes afirmam fazer apostas esportivas. Entre as razões que os motivam estão ganhar dinheiro de forma rápida (29%) ou fazer uma renda extra (27%).
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E veja só, a situação hipotética citada no início deste texto não é tão hipotética assim. Isso porque, o quarto principal objetivo ao apostar é, justamente, quitar dívidas (16%). De acordo com a pesquisa, 44% dos inadimplentes que apostam já fizeram isso com esse objetivo. O levantamento ouviu 4.463 pessoas inadimplentes.
Para especialistas, essa é uma realidade preocupante, principalmente porque ela joga contra os dados da vida real. Afinal, informações vindas do Itaú Unibanco mostram que os brasileiros perderam quase R$ 24 bilhões em um período de um ano com as apostas. É um saldo geral, mas isso mostra que se há quem ganhe, há muitos e muitos que saem das bets com menos dinheiro do que entraram.
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“Eu não diria que é uma bomba-relógio, é uma bomba que já explodiu. Esse número [de inadimplentes que apostam] é alarmante”, afirma Fábio Gallo, professor da FGV e colunista da Inteligência Financeira. “Se quem está endividado está apostando, você tem uma evidência clara de que esse número [geral de de inadimplentes] será superior em breve”, alerta o professor.
O mal da inadimplência
O número de 72,6 milhões de inadimplentes preocupa por uma série de razões. Em primeiro lugar, porque ele está aumentando. Os dados mais recentes são de setembro de 2024. Um ano antes, eram 71,8 milhões de pessoas nessa situação.
Em segundo lugar pelos muitos efeitos deletérios que a inadimplência provoca na economia. “Se você tem menos dinheiro disponível para o consumo, você não tem um aumento de salário que mantenha o poder de compra no Brasil. Mais inadimplência representa menos gente comprando coisas, o que inibe o nosso crescimento”, avalia o professor Fábio Gallo.
Para ele, o crescimento da inadimplência se deve a um conjunto de fatores, com grande peso para a alta taxa básica de juros, mas a disparada das bets não ajuda nem um pouco. “É como se você estivesse jogando álcool para acabar com o incêndio”, compara.
O tema foi citado recentemente por Marcelo Noronha, CEO do Bradesco, durante recente call de resultados do banco. “É uma variável negativa”, afirmou o executivo, que disse que o Bradesco está conduzindo também uma pesquisa sobre o assunto.
O que leva os inadimplentes para as bets?
Patrícia Camillo é gerente executiva da Serasa. Em conversa com a Inteligência Financeira, ela avalia que o sinal que preocupa é o quanto está na cabeça de muitos brasileiros a ideia falsa de que as apostas esportivas sejam uma forma de renda extra ou um investimento.
Para ela, “bets devem ser encaradas como um entretenimento. A sua alocação de gastos, de tempo, deveria ser tida dessa forma. Mas não, ainda estão sendo vistas como uma forma de renda extra ou dinheiro fácil”. “E isso se torna um risco ainda maior quando a pessoa já está inadimplente. Ou seja, com a situação financeira fragilizada”.
A gerente da Serasa acredita que parte disso se explica pelo contexto social que as bets encontraram quando tomaram força no Brasil.
“Depois da pandemia, muitas pessoas perderam o pouco que tinham de reserva ou não tinham reserva alguma e por isso foram tão prejudicadas. E nós vimos que as contas básicas [como água e luz] passaram a tomar uma proporção maior na inadimplência. Na hora que se traz uma alternativa [tida como de] renda fácil, você cria essa ilusão”, avalia.
“Tem um contexto macro, mas hoje o setor de bets também está muito presente em uma mania nacional, que é o futebol, com os patrocínios”.
Ela explica que a média do brasileiro hoje é de ter ao menos quatro dívidas. A análise que a especialista faz é que ao optar pelo caminho das apostas como solução para a dívida, fatalmente ela deixa de renegociar e começar a pagar o débito que ela já tem.
“A partir do momento que ela pega esse dinheiro com o objetivo de tentar alavancar, ela deixa de assumir esse compromisso de longo prazo [com a renegociação]”, afirma.
Entre outras respostas dos inadimplentes que apostam, há dados que apontam que 10% já buscaram crédito para apostar e 13% já deixaram de pagar contas. Além disso, 47% não estavam endividados quando começaram a apostar.