Lula na China: acordos com gigante asiático podem somar R$ 50 bi em investimentos

Segundo o governo, Brasil pretende diversificar a sua pauta de exportação para a China e vender mais produtos industriais

Se o plano do governo brasileiro era marcar em grande estilo o “relançamento” das relações com a China, após o afastamento causado pelos tropeços de Jair Bolsonaro, a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi um grande sucesso. Em seus discursos, Lula não cansou de enaltecer a importância da parceria estratégica com o sócio comercial número um do Brasil, desdenhou da pressão dos EUA pelo boicote à China e questionou a hegemonia americana em críticas ao domínio do dólar, o que pareceu estar em perfeita sintonia com a multipolaridade defendida por Pequim.

Mas se havia o desejo de manter um tom de equidistância em meio à rivalidade crescente entre China e Estados Unidos, a impressão que a visita deixa é de uma inclinação para o lado de Pequim, algo que os integrantes da comitiva brasileira negaram. Na declaração conjunta divulgada ao final da visita, os dois países “reafirmaram o compromisso de promover a democratização das relações internacionais e o multilateralismo”, princípios que aparecem quase diariamente no discurso da China.

O governo chinês retribuiu com uma recepção à altura da expectativa de uma virada de página, com uma conversa bem mais longa que a planejada entre Lula e o líder do país, Xi Jinping, o compromisso reiterado com a “parceria estratégica” entre os países e uma cerimônia de boas-vindas com pompa máxima, com direito à música “Novo Tempo”, de Ivan Lins, tocada por uma banda militar. Entre os acordos assinados, um empréstimo de R$ 6,5 bilhões do Banco de Desenvolvimento da China, um protocolo para a produção conjunta de um novo satélite e cooperação para facilitar comércio e investimentos.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, estimou em R$ 50 bilhões o total de investimentos gerados a partir de acordos alinhavados durante a visita, que incluem dois projetos na Bahia, a ponte Salvador-Itaparica pela Companhia Chinesa de Construção e Comunicações (CCCC) e a instalação da montadora de carros elétricos BYD na antiga fábrica da Ford em Camaçari. O tom dos discursos de Lula e o volume de possíveis negócios com a China sugeriram uma aproximação maior com Pequim na comparação com a visita de Lula aos EUA em fevereiro, em que não houve anúncios de investimentos.

Haddad negou que isso indique um distanciamento de parceiros do Ocidente. – Nós não temos nenhuma intenção de nos afastar de quem quer que seja, sobretudo de um parceiro da qualidade dos EUA. Estamos fazendo um esforço de aproximação, queremos investimentos dos EUA, mas estamos vivendo um momento de desinvestimento, empresas americanas deixaram o Brasil. Mas nós queremos estabelecer as melhores relações e parcerias com os três grandes blocos comerciais, os EUA, a União Europeia e a China.

Embora a declaração conjunta ressalte o interesse em aprofundar a parceria estratégica, o Brasil mostrou cautela ao não se comprometer formalmente com programas associados à ambição geopolítica chinesa, o que poderia gerar desconforto ainda maior em sua relação com os EUA. Frustrando a expectativa de Pequim, não houve adesão à chamada Nova Rota da Seda, o megaprojeto de infraestrutura que tornou-se uma das bandeiras da diplomacia econômica de Xi Jinping. Na declaração, o Brasil diz apenas estar disposto a “examinar sinergias” entre suas políticas de desenvolvimento e o o projeto chinês.

Mas se houve o cuidado de não colocar a assinatura do Brasil em iniciativas que pudessem indicar um alinhamento com Pequim, nos discursos de Lula não faltaram garantias de que o país resistirá a pressões para aderir a boicotes promovidos pelos EUA contra a China. No início de seu encontro com Xi, o presidente brasileiro citou a visita que fez na quinta em Xangai à gigante de tecnologia Huawei, banida nos EUA. A empresa tornou-se um dos principais alvos americanos na disputa tecnológica com a China, e esteve perto de ser vetada nas redes de telefonia 5G do Brasil durante o governo Bolsonaro.

“Fizemos uma visita à Huawei numa demonstração de que nós queremos dizer ao mundo que não temos preconceito na nossa relação como os chineses e que ninguém vai proibir que o Brasil aprimore sua relação com a China”, disse Lula ao presidente chinês.

Segundo membros da comitiva brasileira, “houve química” entre Lula e Xi, demonstrada pelo encontro que os dois tiveram, bem mais longo que o programado. A conversa de quase duas horas se estendeu por mais duas no banquete oferecido a Lula, em que o governo chinês buscou ganhar os brasileiros pelo estômago – com pratos como sopa de fungo com lagosta e o tradicional Pato de Pequim – e pelo ouvido, com uma seleção de canções brasileiras tocadas pela banda militar. Para completar, a ministra da Cultura, Margareth Menezes, cantou a capela Luz do Sol, de Caetano Veloso. Xi e Lula não pararam de conversar durante todo o jantar, relatou um dos convidados.

Após dois dias de intensa programação, Lula iria concluir sua passagem pela China com uma entrevista coletiva na embaixada do Brasil em Pequim. Mas no último minuto o presidente cancelou o encontro e deu por encerrada a agenda de compromissos oficiais. Foi uma despedida com ares de anticlímax, depois de uma visita marcada por uma série de declarações fortes do presidente, de apreço à China e contra a hegemonia dos EUA.

Em seu lugar falaram o embaixador brasileiro em Pequim, Marcos Galvão, o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Enquanto os jornalistas estavam ocupados com eles, Lula deixou a embaixada despercebido e seguiu para o hotel em que está hospedado. O embaixador Galvão afirmou que Lula estava cansado, por isso decidiu faltar à coletiva, que começou com mais de três horas de atraso. A partida de Lula está prevista para a manhã deste sábado (noite de sexta no Brasil), rumo a Abu Dhabi.

A ausência do presidente deixou sem resposta uma das questões que mais interessavam aos jornalistas: como foi a conversa com Xi sobre os esforços para negociar um fim à guerra na Ucrânia, nos quais o Brasil aspira ter um papel. O silêncio sobre o assunto foi total. Assim como Lula, o chanceler Mauro Vieira e o assessor especial Celso Amorim também não falaram com a imprensa brasileira durante toda a visita, algo incomum em viagens internacionais. Há indícios, porém, de que o tema foi tratado pelos dois responsáveis pela política externa brasileira com o governo chinês.

Mauro Vieira chegou à China dois dias antes do presidente, e ficou em Pequim antes de se juntar ao presidente em Xangai, onde ele começou a visita. Na quinta, Amorim faltou à posse de Dilma Rousseff como presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, o banco dos Brics, bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Sua ausência causou estranheza, já que ele é um dos “pais” do grupo de países emergentes. Enquanto Lula roubava a cena na cerimônia de posse, com um enfático discurso contra a hegemonia do dólar, Amorim estava em Pequim, em conversas com autoridades chinesas. Em outra peça com participação brasileira do xadrez em torno da guerra na Ucrânia, na próxima segunda está prevista uma visita a Brasília do chanceler russo, Serguei Lavrov.

A declaração conjunta é vaga sobre o conflito. O documento inclui uma troca de elogios às posições de ambos os lados, com um ponto em comum: “diálogo e negociação são a única saída viável para a crise”. Há ainda uma possível indicação nas entrelinhas de apoio à ideia do Brasil de um “clube da paz”, com um apelo a que “mais países desempenhem papel construtivo para a promoção da solução política da crise”.A China tem se mostrado disposta a ter um papel mais ativo nas negociações enquanto evita criticar a invasão e mantém sua proximidade com Moscou, no que tem sido chamado de “neutralidade pró-Rússia”. O Brasil, que ao contrário da China apoiou a resolução da ONU pedindo a retirada da Rússia dos territórios ocupados, afirma na declaração conjunta que “recebeu positivamente” a proposta de Pequim sobre a guerra, na qual é defendido um cessar-fogo, mas sem qualquer menção a uma retirada russa.