Laurentino Gomes: Brasil nunca será rico, justo e democrático se não forem realizados os sonhos dos abolicionistas

Autor finaliza trilogia com “Escravidão - Volume III: Da Independência do Brasil à Lei Áurea”

O genocídio perpetrado contra negros trazidos à força para o país, escravizados, e com o beneplácito da família imperial brasileira continua hoje. Relutante inicialmente em admitir que genocídio era a palavra certa para caracterizar a política brasileira em relação a negros – e povos indígenas -, um dos escritores brasileiros contemporâneos que mais venderam livros de não ficção, Laurentino Gomes, não tem mais dúvidas.

Seguindo as definições usadas pelo também escritor Abdias do Nascimento em “O genocídio do negro brasileiro”, Laurentino escreve que genocídio nem sempre significa o extermínio físico de um grupo de pessoas, mas abrange também aspectos como a memória, cultura, língua, religião, “a possibilidade de sobreviver e prosperar, de realizar os seus talentos e vocações, de ascender a postos de liderança, a empregos e posições de reconhecimento social”. E tudo isso foi sistematicamente negado aos negros e continua sendo. Assim, para Laurentino, continua válida a questão que foi muito debatida no século XIX: o que fazer com os negros do Brasil?

Autor de uma série de três títulos sobre a transformação do Brasil colônia em república (“1808”, “1822” e “1889”), que conjuntamente com os dois primeiros livros da série “Escravidão” venderam cerca de 3,5 milhões de exemplares, segundo a Globo Livros, Laurentino passou de jornalista de publicações como “O Estado de S. Paulo” e “Veja” para os livro

s da série “Escravidão” venderam cerca de 3,5 milhões de exemplares, segundo a Globo Livros, Laurentino passou de jornalista de publicações como “O Estado de S. Paulo” e “Veja” para os livros, sem deixar, diz ele, de ser repórter. Antes de escrever, pesquisa e lê tudo o que encontra sobre o tema – livros, documentos, jornais – e depois volta a ser repórter.

“O país nunca será rico, justo e democrático se não forem

realizados os sonhos dos abolicionistas”, diz

Laurentino Gomes

Em busca de informações, foi à África e Portugal, visitou quilombos, antigos engenhos de cana-de-açúcar no Nordeste e fazendas de café no Vale do Paraíba (entre os estados do Rio de Janeiro e São Paulo) e terrenos de candomblé na Bahia. Ele faz a ressalva de que a grande maioria das fontes que consultou sobre o período escravocrata e seus impactos sobre a vida atual dos brasileiros foi escrita ou relatada
por brancos. Depois dessas seis obras, diz que vai descansar um pouco antes de um novo projeto.

“Escravidão – Volume III: Da Independência do Brasil à Lei Áurea” reconstrói o período imperial brasileiro, com as artimanhas políticas e diplomáticas dos poderosos da época para manter o status quo, fingindo-se que eram cumpridas as leis que muito lentamente foram restringindo a escravidão.

Fingia o governo, fingia a família de Dom Pedro II, fingiam os fazendeiros, fingiam os juízes que deveriam analisar os casos dos navios que continuam a trazer negros da África para o Brasil, apesar da proibição formal baixada por meio de uma lei. Todos fingiam que não percebiam que o tráfico de negros da África continuava intenso, muitos concordavam que era preciso acabar com a escravidão, mas sugeriam sua continuação pelo medo do que poderia acontecer economicamente no país com seu fim.

Só houve espaço para o fim da escravatura quando houve mudanças estruturais: a escravidão se tornara “um sistema inoperante”, cresceu a importância dos escravizados nascidos no Brasil, favorecendo a assimilação deles pelos brancos e a organização de movimentos de resistência, fugas e rebeliões entre os cativos. Foi em meados do século XIX que os escravizados encontraram pela primeira vez apoio na Justiça e mais simpatia do restante da população, escreve Laurentino. “O regime escravista passou a ser visto cada vez mais como uma instituição a ser condenada, ilegítima e a serviço de grupos minoritários.” Além disso, começam a chegar ao Brasil levas de imigrantes europeus para substituir os negros nas lavouras e trabalho nas cidades.

A seguir, os principais destaques do livro mais recente de Laurentino e os tópicos mais importantes de entrevista que ele concedeu ao Valor:

Brasil idealizado versus Brasil realidade

Criou-se a imagem de que o Brasil na época do Império era “europeu, educado, refinado”, um pouco à semelhança de Dom Pedro II, que, de fato, era ilustrado e tinha grande interesse pela ciência. Fora dos palácios e das casas dos senhores de escravizados, o que se via era um país pobre, faminto, analfabeto. Um processo continuado de autoengano que continua hoje.

Aliança da família real e a elite

Nos últimos anos do domínio português sobre o Brasil, com a propagação das ideias consideradas libertárias, como a de liberar o país de Lisboa e de combate à escravatura, a elite temia dois perigos. O primeiro era a possibilidade de uma guerra civil entre os que eram a favor da independência do país e os que resistiam a isso, o que poderia levar a uma fragmentação do Brasil à semelhança do que aconteceu com a América colonizada pelos espanhóis. O outro risco era os escravos pegarem em armas. A “solução” foi seguir adiante com a independência brasileira de Portugal e aprovação da lei que proibia a vinda de escravizados para o país. “Uma ruptura de Portugal sob controle.”

Compensação?

Seria muito complicado calcular como, quanto e a quem deveria se pagar uma compensação monetária aos descendentes de escravizados. Mais eficaz do que essa medida seria adotar políticas públicas que possibilitassem quebrar a cadeia que mantém boa parte da população, negros, pardos e indígenas, sem condições de estudar e desenvolver carreiras que lhes deem oportunidades iguais às dos brancos. “É ilusão que o racismo se resolva com pagamento financeiro, mas sim com o oferecimento de oportunidades para que todos desenvolvam seus talentos. O país nunca será rico, justo e democrático se não forem realizados os sonhos dos abolicionistas.”

Quem eram os abolicionistas

Os baianos Luiz Gama, André Rebouças e Castro Alves, o fluminense José do Patrocínio, o pernambucano Joaquim Nabuco e o paulista Antônio Bento (este último bem menos conhecido que os outros) são considerados os líderes do movimento abolicionista no século XIX, com perfis e origens bem diferentes entre si. Organizados em clubes ou organizações que patrocinavam a fuga de escravizados das fazendas, tinham como objetivo básico conquistar a opinião do restante da população para a causa. Promoviam eventos os mais variados, escreviam artigos nos jornais ou poemas como “O navio negreiro”, de Castro Alves. Pressionavam o governo, retiraram o apoio à monarquia.

Fazendeiros de café

O destino dos africanos que chegavam ao Brasil como cativos foi gradualmente acompanhando a mudança do centro da vida econômica do país imperial – das usinas de cana-de-açúcar do Nordeste para a produção de café no Sudeste. Entre 1836 e 1854, o número de escravizados mais do que triplicou no Vale do Paraíba, o principal centro produtor de café da época. E é desta região que surgem figuras pouco conhecidas nacionalmente, mas que ilustram de maneira perfeita a pressão que os cafeicultores exerciam pela permanência do regime escravocrata.

Mudanças na sociedade

Apesar dos pesares, há mudanças na forma como os brasileiros veem os negros e indígenas em parte como consequência do intenso debate – nas redes sociais e fora delas – sobre racismo e preconceito. Temos a imagem de que somos um povo “pacífico, tolerante, trabalhador Mas os níveis de violência e corrupção no Brasil mostram outra situação”.

Portugal e China

Livros de Laurentino foram publicados em Portugal e nos Estados Unidos. Os portugueses reagem de uma forma totalmente diferente do que os brasileiros ao tema da escravidão. Enquanto por aqui o assunto causa polêmica, é o mais tratado nos cursos de história e é considerado extremamente importante, em Portugal predomina o desinteresse. “É o não assunto.” É estudado na academia, mas não há a preocupação de um ajuste de contas com o passado.

O mito de Portugal como grande desbravador dos navegantes ousados é tão forte que não deixa espaço para se analisar a escravidão. Sintomaticamente, o governo português já pediu desculpas aos descendentes dos judeus que sofreram na Inquisição, mas não os africanos e indígenas escravizados. Brevemente os livros também serão editados na China – o que mostraria como os chineses estão se preparando, seriamente, para se tornar a maior potência mundial, no caso aproveitando o gancho dos 200 anos da independência do Brasil para publicar por lá livros de autores nacionais.

Origens familiares

No capítulo dos agradecimentos pela ajuda ao livro, Laurentino conta que sua mulher e agente literária, Carmen, descobriu poucos anos atrás que 20% da sua ancestralidade vinha da região do Congo e de Angola, região de onde partiram negros que foram parar no Rio Grande do Sul, estado de origem da família dela. O que Laurentino não considera uma simples coincidência: “A África existente em Carmen velou por mim enquanto eu caminhava” na feitura da sua trilogia mais recente. Ele próprio descende de judeus sefarditas da Península Ibérica. Seu avô paterno saiu de Brasópolis, em Minas Gerais, para plantar café no norte do Paraná em 1947, mesmo ano da fundação de Maringá, onde Laurentino nasceu, em 1956.