Hillary Clinton: “Estamos na iminência de perder nossa democracia”

Ex-candidata a presidente dos EUA fala sobre negociar com Vladimir Putin, a “profetisa” Margaret Atwood — e por que os democratas precisam conter a esquerda radical

Almoçar com Hillary Clinton não é um acontecimento rotineiro. Quando chego ao elegante hotel Park Hyatt, o gerente, um tanto nervoso, me conduz para uma discreta porta lateral para aguardar a chegada de Hillary.

Após vários minutos de uma conversa fiada constrangedora, percebo que Hillary já passou pela entrada da frente e está sentada há alguns minutos. Eles me conduzem através dos seguranças até uma área de refeições reservada da Blue Duck Tavern. Hillary está conversando com Nick Merrill, seu assessor de longa data, que permaneceu com ela depois que ela deixou o cargo de secretária da Defesa em 2013.

Nosso encontro demorou a germinar. Em parte isso se deve ao fato de ela estar sempre em trânsito. Ela acaba de chegar do Reino Unido, onde palestrou no festival literário Hay e conheceu um americano que ajudou a organizar as celebrações do jubileu da rainha Elizabeth II. “A equipe estava muito nervosa”, diz ela. “Mas acabou se saindo bem, certo?”

Esse encontro também exigiu alguma persuasão porque Hillary, para dizer o mínimo, não adora exatamente a mídia. Observo que, apesar de todas as minhas colunas criticando sua malfadada campanha de 2016, eu nunca disse o que ela deveria vestir ou quando sorrir — conselhos não solicitados com que muitos comentaristas do sexo masculino pareciam se deleitar. “Isso coloca você em uma
pequena minoria”, diz ela, rindo. É, portanto, com uma estudada indiferença que descrevo Hillary vestindo um terno cinza de marca e um colar de prata e pérolas substancial. Ela parece não ter problemas para sorrir.

Considero meu objetivo fazer Hillary remover a máscara que ela usa para interações com pessoas como eu. Amigos mútuos afirmam que em particular ela é engraçada e pode ser bem sarcástica. Colegas da mídia americana têm uma visão muito diferente de uma mulher com quem têm rusgas há décadas.

Ela enfrentou uma geração de investigações infrutíferas, começando com a investigação nos anos 1990 sobre os investimentos do casal Clinton no empreendimento imobiliário Whitewater que culminaram no relatório de Kenneth Starr sobre as indiscrições sexuais de seu marido, depois nas audiências de Benghazi sobre o assassinato de um embaixador dos EUA e três outros americanos sob seu mandato em 2012, e mais recentemente — neste mesmo dia, na verdade — a absolvição de um consultor jurídico da campanha de Hillary, que foi acusado de ter influenciado indevidamente o FBI para que este investigasse as ligações entre a campanha de Donald Trump e o Kremlin. Hillary se descreveu como “a pessoa
inocente mais investigada da América”. Ela também é uma decana do juridiquês aplicado, o que poderia sufocar este almoço antes mesmo de ele começar.

Uma taça de vinho faria sentido, no entanto. “Ah, eu gosto muito de vinho, mas hoje não”, diz Hillary. “Mas fico feliz em observar outras pessoas bebendo, portanto vá em frente.” Merrill e eu concordamos simultaneamente e cada um pede uma taça de Sancerre. Hillary vai de chá gelado. Ela pergunta à garçonete se a sopa verde de verão resfriada é à base de creme ou purê. Observo que uma de suas refeições mais recentes foi peixe com batatas fritas em uma tradicional lanchonete de Tyneside, na Inglaterra, depois de ela fazer uma palestra na redondeza. “Preciso confessar que achei que as batatas seriam de um tipo especial”, diz ela. “Achei que seriam batatas com corte redondo. Vocês chamam de batata frita, mas não é esse tipo que vemos por aqui.” Ainda estamos divididos pelo mesmo idioma, sugiro.

Isso leva Hillary a falar sobre sua genealogia paterna das cidades mineradoras do Nordeste da Inglaterra. Seu bisavô, Jonathan Rodham, foi um mineiro de carvão recrutado para cruzar o Atlântico com sua família na década de 1880. Eles se estabeleceram em Scranton, Pensilvânia. Ele rapidamente mudou para um emprego em uma fábrica de rendas. Hillary está intrigada por que as pessoas são tão nostálgicas em relação à vida na mineração. “Se eles eram da Virgínia Ocidental ou de Tyneside, suas vidas eram tão difíceis, propensas a doenças e pouco higiênicas — mas a nostalgia desses dias, sei lá…”, afirma.

Algumas pessoas culpam a derrota de Hillary em 2016 aos seus comentários sobre o fechamento de minas de carvão (Trump prometeu um boom da mineração). Mas identificar um culpado por sua derrota em 2016 é como o filme “Assassinato no Expresso do Oriente” — o punhal está coberto de impressões digitais. Em suas memórias sobre a campanha, “What Happened”, Hillary assume a principal culpa e também aponta para a investigação do FBI sobre os e-mails de seu servidor doméstico, sua gafe sobre metade da base de Trump ser “deplorável” e sua habilidade em dar à mídia um “novo coelho todos os dias, sabendo que nunca pegariam nenhum deles”.

Tendo sido informada de que é à base de creme, Hillary dispensa a sopa e vai para o bolinho de caranguejo com salada, que eu também peço. Digo a Hillary que, ao saber de sua derrota em 2016, minha filha, então com 9 anos, parou de tomar minhas palavras como sagradas. Eu a havia assegurado, um tanto precipitadamente, que Trump não venceria. “É realmente notável a frequência com que me contam histórias como essas e a frequência com que leio algo como uma história de ficção ambientada nos tempos modernos e 2016 é um acontecimento traumático — é quase escatológico”, diz Hillary. “É uma ruptura na história. Um negócio inacabado.”

De olho na provável reversão da decisão Roe vs. Wade (confirmada na sexta, dia 24/6), aquela de 1973 em que a Suprema Corte dos EUA consagrou o direito das mulheres ao aborto, pergunto a Hillary até onde esses negócios inacabados devem ir. “Se você entrar na toca do coelho dos intelectuais de extrema direita, verá que o controle de natalidade, o casamento gay — tudo isso está ameaçado”, responde ela.

Qual é o objetivo final da direita cristã?, pergunto. Supostamente, eles não seriam capazes de criar a distopia teológica retratada no romance de 1985 de Margaret Atwood, “The Handmaid’s Tale” [“O conto da aia”]? Minha pergunta provoca uma resposta arrebatada. Hillary fala sobre como alguns estados tornarão ilegal o aborto após o estupro e o incesto se a decisão Roe vs. Wade for derrubada. Um estado — “e isso é difícil até de falar”, afirma ela — exigiria que a mulher obtivesse a permissão de seu estuprador para abortar. Outros planejam criminalizar as mulheres que fizerem o procedimento em estados em que ele é legal.

“O nível de regulamentação insidiosa para oprimir ainda mais as mulheres quase não tem fim”, diz Hillary. “Você olha para isso e como não poderia deixar de pensar que Margaret Atwood é uma profetisa? Ela não só é uma escritora brilhante, como também é uma profetisa.”

Hillary acrescenta que quando era senadora, votou contra a confirmação de Samuel Alito, um dos juízes mais conservadores da Suprema Corte. “Descobri que Alito foi o tipo de jovem que, quando estudou em Princeton, protestava contra a coeducação, contra deixar as mulheres entrarem nos clubes de limentação, e isso foi tudo em segundo plano que eu li”, lembra ela. “Honestamente, ele me pareceu um daqueles tipos muito hipócritas que tentam refazer a sociedade.”

Clinton pede salada extra para seus bolinhos de caranguejo e mais chá gelado. “Vocês deveriam tomar mais vinho”, diz ela, ao que nós dois recusamos com relutância. Pergunto se as coisas teriam sido diferentes se ela, e não Trump, tivesse vencido em 2016. Sua resposta deixa claro que ela acredita que a invasão do Congresso americano em 6 de janeiro de 2021 para impedir a certificação da vitória de Joe Biden simplesmente teria acontecido quatro anos antes. “Literalmente poucas horas depois do fechamento das urnas em 2016, tivemos muitas evidências de eleitores sendo rejeitados em Milwaukee e impedidos de votar em Detroit”, responde ela.

“Esses estados eram governados por republicanos, então não havia como descobrir a verdade sobre nenhum deles. Também acredito em sucessão e transição pacíficas e tudo isso.” Nesse ponto, ela diz que não tinha conhecimento da Cambridge Analytica e do papel dos algoritmos de redes sociais — “todas as coisas que estavam convencendo as pessoas de que eu era uma assassina ou uma traficante de crianças”. Ela me lembra que venceu no voto popular por quase 3 milhões de votos, mas perdeu no colégio eleitoral por 78 mil votos. Biden venceu no voto popular por mais de 7 milhões de votos, mas mal conseguiu 43 mil votos no colégio eleitoral. “Isso diz tudo que você precisa saber sobre a estratégia republicana para 2024. Mesmo em seu cérebro reptiliano, Trump precisa saber que perdeu desta vez. Ele se recusa a aceitar isso porque é algo que não deveria acontecer.”

Ela acha que Trump vai concorrer em 2024? “Eu acho que se puder ele vai concorrer novamente”, responde Hillary. “Siga o dinheiro com Trump — ele arrecadou cerca de US$ 130 milhões em sua conta bancária, que ele usou para viajar, bancar a organização contra as eleições… Não sei quem vai desafiá-lo nas primárias republicanas.”

Você conseguiria se imaginar concorrendo novamente?, pergunto a ela. “Não, isso está fora de questão”, responde. “Em primeiro lugar, espero que Biden concorra. Ele certamente pretende concorrer. Seria muito disruptivo desafiar isso.”

O fato de que Biden terá 81 anos na próxima eleição é, no entanto, uma fonte crescente de angústia para alguns democratas — e de especulações sobre se ele poderá deixar o cargo. Hillary não chega ao seu segundo ponto sobre por que não buscará altos cargos novamente. O primeiro parece ser conclusivo o suficiente.

Tínhamos concordado em dividir a torta de maçã que é a assinatura do restaurante, mas é tão grande que Hillary reage à sua visão. “Uau. Pra mim chega. Comam vocês dois”, sugere Hillary a Merrill. A taça de frutas vermelhas que ela pediu nunca chega.

Ela sabe que esses almoços devem ser para conversar e dispara várias perguntas. A mais relevante delas é como eu compararia Henry Kissinger, que recentemente fez 99 anos, com o falecido Zbigniew Brzezinski (1928-2017), rival e amigo de longa data de Kissinger, cuja biografia estou pesquisando. Eu discerni um subtexto para a pergunta dela. Kissinger disse recentemente que a Ucrânia poderá ter de ceder território a Putin para pôr fim à guerra. Digo que, no geral, Brzezinski tinha uma compreensão mais aguçada das fraquezas da União Soviética. “Concordo totalmente”, diz Hillary. “É preciso dar a Kissinger crédito pela longevidade, se nada mais. Ele simplesmente continua seguindo. Nunca achei que Brzezinski tinha uma visão romântica dos russos da maneira que Kissinger tinha. Ele valoriza muito seu relacionamento com Putin.”

Parece um bom momento para perguntar a Hillary sobre o líder da Rússia, sobre quem certa vez ela brincou “não ter alma”. Embora ela fale sobre a situação atual na Ucrânia, continua se referindo ao papel de Putin nas eleições americanas de 2016, que ela acredita ter sido uma vingança por uma declaração “anódina” que ela fez como secretária de Estado em 2012, em apoio aos protestos pró-democracia contra seu retorno à Presidência da Rússia.

Ela conta uma anedota sobre um jantar em um restaurante de Londres anos atrás, em que os convidados debateram a sabedoria da expansão da Otan depois da Guerra Fria. Depois de um tempo, o garçom interrompeu: “Antes de eu pegar seu pedido, sou da Polônia e tenho uma coisa a dizer: nunca confie nos russos”, lembra Clinton com aprovação. Ela acrescenta: “Sempre acreditei na expansão da Otan e acho que os argumentos contra isso são na melhor das hipóteses, ingênuos, porque o que temos visto é a prova definitiva de por que isso era necessário”.

Putin certa vez disse sobre Hillary: “É melhor não discutir com as mulheres”. Pergunto se Putin foi tão contundente em relação a Hillary tanto em particular quanto em público. Ela respira fundo. “Sim, ele era muito machista comigo. Tínhamos algumas interações interessantes e até mesmo úteis em particular, e depois a imprensa era convidada e ele dizia algo ofensivo contra a América. Ele então fazia pose para causar efeito. Na visão de Hillary, o único caminho realista de Putin para a vitória na Ucrânia seria a reeleição de Trump em 2024. “Se Trump tivesse vencido em 2020, ele teria saído da Otan — não tenho dúvida disso”, afirma ela.

Meu expresso chega. Hillary pede mais chá gelado. Não posso permitir que o almoço termine sem questionar a direção de seu partido. Digo que os democratas parecem estar se esforçando para perder as eleições ao promover causas ativistas, notadamente o debate sobre transgêneros, que são relevantes apenas para uma pequena minoria. Que sentido faz retratar JK Rowling como fascista? Para minha surpresa, Hillary compartilha da premissa da minha pergunta.

“Estamos na iminência de perder nossa democracia”, diz ela. “Veja, a coisa mais importante é vencer a próxima eleição. A alternativa é tão assustadora que o que não ajudar a vencer não deve ser uma prioridade.”

Outro exemplo é a campanha “desfinanciar a polícia”, acrescenta ela. “É preciso ter medidas responsáveis. Mas também é preciso policiamento. Não passa nem no teste do bom senso político não acreditar nisso. Algumas posições são tão extremas, tanto na direita quanto na esquerda, que eles recuam para seus cantos… A política deveria ser a arte da soma, e não da subtração.”

Foram 100 minutos intensos, mas não tenho certeza se convenci Hillary a tirar sua máscara proverbial. Enquanto caminhamos pelo movimentado restaurante — Hillary acena entusiasmada para as pessoas e recebe de volta uma enxurrada de saudações efusivas —, percebo que ela não trouxe uma máscara de verdade, uma comissão ainda vista de soslaio em alguns círculos. “Você deveria tomar uma taça de vinho da próxima vez”, sugiro enquanto nos dirigimos para o pequeno comboio de carros. “Concordo alegremente com isso”, diz ela. E então, ela desaparece por trás de vidros escuros.

Por Edward Luce, do Financial Times, com tradução de Mario Zamarian.