O que você precisa saber para entender a crise econômica na Argentina
Explicamos a crise argentina, que não é um episódio isolado nem inédito
Em junho deste ano o Banco Central da Argentina elevou a taxa básica de juros para 52% na tentativa de lidar com a maior inflação em 30 anos. Pouco depois, o país anunciou seu novo “superministro” para comandar e mudar os rumos da economia. Enquanto isso, a desvalorização do peso argentino seguia a todo vapor. Não precisa ser um especialista para saber que a situação do país não é boa. Mas, pode ser difícil entender o motivo dessa crise. Vamos te ajudar.
Por onde começar para entender a crise econômica na Argentina
É importante saber, antes de tudo, que a Argentina é um país que experimenta crises recorrentes. O que estamos vendo agora, portanto, não é um episódio isolado nem inédito. “A Argentina passa pelo que chamamos de ciclos de prosperidade e falência, que são determinados por eventos da economia global. Isso acontece de forma recorrente por uma série de fatores políticos e econômicos”, explica Carolina Moehlecke, professora da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas.
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De uma maneira geral, o mercado global olha com muita desconfiança para a economia do país. “Essa crise é um reflexo de eventos globais e questões domésticas da Argentina, que tem a tendência de se endividar excessivamente. A própria estrutura econômica do país não contribui para o cenário e acaba causando a desvalorização da moeda, inflação e outros problemas que dificultam a atração de capital”, ressalta Carolina.
Um país com poucos aliados
Outro ponto essencial para entender a crise da Argentina é a baixa integração do país ao comércio internacional. “A Argentina exporta cerca de US$ 60 bilhões, mas importa uma quantia similar. A agricultura, que é altamente competitiva em relação a outros países, acaba sendo muito onerada tanto por impostos governamentais quanto pelo forte intervencionismo estatal, o que gera baixa competitividade para o país. No fim das contas, a produtividade não se compara a outros lugares como a China”, explica Gabriel Petter da Penha, professor e analista político. Em outras palavras, a Argentina é pouco conectada ao mercado internacional.
“Também existe a questão de que investidores estrangeiros temem um risco de calote quando percebem que o país está aumentando sua dívida externa. Assim, eles não fazem novos empréstimos e ainda tentam tirar seu capital e investimentos existentes no país, o que deixa a Argentina sem recursos para continuar “rolando” a dívida”, ressalta a professora Carolina. Isso gera uma bola de neve e efeitos como inflação altíssima e desvalorização da moeda. Mas, já vamos falar melhor sobre isso.
Por que o peso argentino tem se desvalorizado tanto?
Vamos dar um passo atrás para entender como os preços das moedas são determinados no mercado internacional. “A Argentina tem um câmbio flutuante, o que acontece com a maioria dos países, incluindo o Brasil. A moeda, portanto, tem um valor determinado pela demanda do mercado por bens, serviços e ativos daquele país”, explica Carolina.
O alto risco e a saída de investidores, uma grande dívida externa e a baixa integração com o comércio internacional fazem com que o peso argentino seja pouco demandado no mercado. Logo, ele se desvaloriza. “O cenário externo também contribui para essa desvalorização. O país sofreu com uma forte queda nas exportações agrícolas em função da contração do comércio durante a pandemia. Houve também um aumento de custo nas importações de energia, especialmente em razão da guerra entre a Rússia e Ucrânia”, ressalta Gabriel.
O que explica a inflação tão alta por lá?
A inflação é um dos reflexos do processo de endividamento. “Sem conseguir atrair capital estrangeiro, o país precisa se financiar de alguma forma. O governo tem que disponibilizar crédito e dinheiro para o mercado doméstico. O que ele faz? Emite mais moeda. É o que tem acontecido. A inflação, portanto, é uma consequência dessa decisão do governo”, explica Carolina. Para se ter uma ideia, em 2020, pior ano da pandemia, o país imprimiu mais de 1,2 trilhão de pesos.
O resultado disso é uma inflação altíssima, que atingiu mais um pico em junho, de 5,3% segundo dados divulgados pelo Indec, o instituto de estatísticas do país. Em 12 meses, a alta acumulada é de 64%. O mercado avalia que o percentual pode chegar a 90% até o fim do ano. “Isso gera um impacto muito grande. Conversando com comerciantes argentinos, percebemos que eles têm dificuldade até mesmo de precificar as coisas. Não sabem mais como vender um item porque não conseguem prever como estarão os preços nas próximas semanas”, destaca Carolina.
Além dos desajustes fiscais, há ainda uma questão política. “Enquanto o atual presidente Alberto Fernández tentou renegociar a dívida do país com o Fundo Monetário Internacional, a vice-presidente Cristina Kirchner foi contra. A constante desvalorização do peso também contribui para esse quadro, uma vez que boa parte da economia é dolarizada. Tudo isso vai agravando a situação”, ressalta Gabriel.
A crise na Argentina é um problema político ou econômico?
Os dois. É praticamente impossível falar sobre a economia da Argentina sem citar o governo. “A política tem um peso muito forte nas características estruturais da economia do país. A persistência desses problemas em grande parte se explica por como o governo lida com a situação. É um conjunto de fatores em um país com grupos de interesses que dificultam possíveis reformas”, explica Carolina.
A falta de políticas públicas consistentes e o forte intervencionismo estatal só reforçam esse cenário. “Existe um forte intervencionismo, uma indústria altamente protegida e que, no conjunto da obra, levam a esse quadro de crise crônica. Uma coisa alimenta a outra. Os sucessivos governos argentinos conseguiram produzir suas próprias crises”, ressalta Gabriel.
O que podemos esperar daqui para frente?
O cenário não é muito animador. É sempre difícil fazer previsões, mas tudo indica que o país enfrentará mais dificuldades. “No geral, momentos de instabilidade da economia global não são positivos para países como Argentina, que precisam de grande liquidez de moeda e investimentos”, explica a professora da FGV.
Em períodos como o atual, a tendência é que investidores procurem colocar seu dinheiro em lugares mais seguros e estáveis, como os Estados Unidos. Com o país norte-americano aumentando a taxa de juros, o movimento deve se intensificar.
Para muitos especialistas, a economia coloca o país no caminho de uma estagflação, ou seja, uma queda da atividade econômica junto a uma forte disparada dos preços. “O cenário é muito desfavorável para a Argentina. O país ainda tem um altíssimo nível de pobreza, o que é difícil reverter no curto ou médio prazo. O que podemos esperar é mais instabilidade econômica, política e uma sociedade civil muito atuante. Já estamos observando um número de protestos, o que deve aumentar nos próximos meses”, ressalta Carolina.