Investimento em foco: entendas as mudanças e continuidades na China
Em 2021, o governo chinês interveio em alguns setores, como aplicativos, e-commerce, plataformas digitais, educação privada, entre outros. Entenda o impacto para a economia brasileira
Ao longo do ano de 2021, algumas nuances apareceram ou se fortaleceram na condução da economia e da política na China, com repercussões para o seu papel no mundo e para as relações internacionais. Embora no Ocidente sobressaiam frequentemente análises com foco nas mudanças, é preciso não perder de vista as continuidades. Estaria ocorrendo na China uma mudança do modelo de desenvolvimento? Como isso poderá afetar o crescimento chinês e sua inserção externa na próxima década? E, mais além, quais as possíveis consequências para o Brasil, e para onde devem olhar os candidatos às próximas eleições presidenciais?
No ano de 2021, quando o Partido Comunista Chinês (PCC) completou cem anos, a China revisitou o seu passado para formalmente dar início a uma nova era. O país fortaleceu sua união interna sob a liderança do PCC em torno da administração do presidente Xi Jinping, que teve o seu legado histórico equiparado ao de líderes como Mao Zedong e Deng Xiaoping. A China alcançou o seu primeiro objetivo centenário de uma sociedade “moderadamernte próspera”, declarou a superação da pobreza extrema e instou os que enriqueceram primeiro a puxar os demais, em busca da “prosperidade comum”.
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A mobilização interna no combate à covid-19 com base na política de supressão é considerada um grande sucesso internamente, mas frequentemente posta em dúvida no plano externo. Em 2021, a China confirmou os compromissos de alcançar um pico nas emissões de carbono até 2030 e de chegar à neutralidade até 2060. O 14º plano quinquenal (2021-2025) colocou o desenvolvimento científico-tecnológico no centro do modelo de crescimento com foco na transformação qualitativa, mas há muitas dúvidas sobre a capacidade chinesa de superar gargalos em setores cruciais.
Desde pelo menos o final da década dos anos 2000, as lideranças chinesas já haviam identificado a necessidade de introdução de mudanças no modelo de crescimento chinês, que era descrito pelo primeiro-ministro Wen Jiabao como desequilibrado, descoordenado e insustentável. A fase de abertura e reforma iniciada em 1978 foi capaz de, após quatro décadas de modernização, transformar a China na segunda economia mundial, principal país manufatureiro e maior nação comercial, hoje o principal parceiro comercial de mais de 120 países.
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Outras consequências do modelo de crescimento foram as desigualdades de renda e regionais, as fragilidades no sistema financeiro e os impactos sobre o meio ambiente e os recursos naturais. Tendências estruturais constituem desafios adicionais: a queda de produtividade, a necessidade de encontrar novas alavancas para o crescimento, que se reduziu de uma média de 10,6%, entre 2001 e 2010, para 6,8%, entre 2011 e 2020, e o envelhecimento da população, cujo percentual acima de 60 anos já ultrapassa 18%.
Embora o mercado e a liberalização de diversos setores tenham tido um papel fundamental em fomentar o crescimento chinês nos últimos quarenta anos, sobretudo nos anos 1980 e 1990, os setores estratégicos da economia foram mantidos sob forte liderança do Estado. Ainda assim, o setor privado na China é responsável por mais de 80% dos empregos, 70% das inovações tecnológicas e 60% do investimento em ativos fixos, contribuindo para cerca de 60% do crescimento do PIB. Mas o movimento de liberalização e regulação não está totalmente completo. Os mercados ainda sofrem e sofrerão espasmos devido a estruturas industriais e regulações pouco eficazes, como foi o caso com a crise no setor elétrico em 2021.
A partir de meados de 2021, o governo chinês tomou uma série de medidas regulatórias ou interveio diretamente em alguns setores, como aplicativos de transporte, e-commerce, plataformas digitais em geral, educação privada, entre outros. As intervenções – que causaram enormes perdas às empresas e aos investidores – destinaram-se a coibir monopólios ou riscos financeiros, mas também a assegurar melhores condições para os trabalhadores, ou até mesmo manter certos padrões culturais e sociais. São consideradas, por muitos, um risco ao investimento privado e ao empreendedorismo. Alguns identificam mesmo uma mudança profunda de modelo, com peso cada vez menor para o mercado.
O fator comum a essas medidas parece ser a disposição da liderança chinesa em trocar crescimento no curto prazo por ajustes que assegurem metas econômicas, sociais e de mudança climática no longo prazo, conferindo ao país a liderança e o rejuvenescimento almejados.
Há na China uma crença renovada no papel do Estado para orientar a transformação estrutural, dada a importância de assegurar que todos os recursos contribuam para o objetivo maior de inovação tecnológica, numa velocidade cada vez maior. Talvez aí esteja a maior discrepância com a visão propugnada em muitos círculos ocidentais, que desconfiam da eficiência do Estado em promover conhecimento científico e inovação.
Ao mesmo tempo em que a abertura ao exterior continua a ser um princípio central do modelo de desenvolvimento chinês, as lideranças reconhecem que o ambiente internacional ficou mais incerto e que os riscos cresceram. Em termos globais, os movimentos de competição e contenção da China se acentuam, mas ainda não está claro como impactarão os fluxos econômicos no médio e longo prazo. Embora o decoupling com os Estados Unidos siga forte em muitos setores estratégicos, o nível de interdependência das duas economias, e da China com o resto do mundo, torna mais difícil prever o cenário da próxima década.
No campo das relações internacionais, é preciso ver como evoluirão a atual moldura do Belt and Road e das múltiplas cooperações e tabuleiros estabelecidos pela China, à luz dos novos desafios e do foco na independência de ação e na capacidade doméstica.
No momento em que a China volta todas as suas energias para a inovação tecnológica com o objetivo de alcançar segurança e liderança em setores-chaves – em alguns dos quais o Brasil tem relevância global, como em alimentos, novas energias e florestas -, é importante dinamizar a parceria e ampliar trocas e contatos. Convém reforçar a confiança mútua em busca de manter e ampliar espaços num mercado cada vez mais competitivo e sofisticado, e cujo foco de atenção geopolítica e econômica tende a concentrar-se cada vez mais na Ásia. O Brasil já tem portas importantes na região, não somente bilaterais, mas também com a Asean e através dos Brics.
No ano em que a parceria estratégica Brasil-China completará trinta anos, em 2023, caberá ao governo eleito no Brasil avaliar mudanças e continuidades na definição do interesse nacional.
Tatiana Rosito foi Ministra-Conselheira na Embaixada do Brasil em Pequim e Representante da Petrobras na China. É senior fellow do Centro Brasileiro de Relações Internacionais e membro consultivo do Conselho Empresarial Brasil-China.