Entenda por que Pernambuco e União duelam por Fernando de Noronha

- Em ação encaminhada o Supremo Tribunal Federal (STF), na semana passada, a União defende que Pernambuco possui apenas os direitos sobre gestão da ilha, mas que o território é patrimônio federal
- O conflito federativo começou em 2017 - antes da eleição do presidente Jair Bolsonaro -, quando foi instalada uma discussão sobre a titularidade dominial de Noronha na Câmara de Conciliação da Advocacia-Geral da União
Entre os destinos turísticos favoritos das celebridades, o paradisíaco arquipélago de Fernando de Noronha se tornou objeto de uma disputa judicial entre a União e o Estado de Pernambuco. Em ação encaminhada o Supremo Tribunal Federal (STF), na semana passada, a União defende que Pernambuco possui apenas os direitos sobre gestão da ilha, mas que o território é patrimônio federal.

O conflito federativo começou em 2017 – antes da eleição do presidente Jair Bolsonaro -, quando foi instalada uma discussão sobre a titularidade dominial de Noronha na Câmara de Conciliação da Advocacia-Geral da União (AGU). Na época, a União provocou o Estado de Pernambuco, levantando questões sobre o cumprimento de um contrato de cessão de bens assinado em 2002.
O assunto ficou adormecido até que voltou a tona no fim do ano passado, quando o Estado de Pernambuco concedeu a exploração do Forte dos Remédios, ponto turístico da ilha, à iniciativa privada. O consórcio IDG, responsável pela gestão do Museu do Amanhã, no Rio, foi vencedor e vai investir e explorar o imóvel por dez anos.
A União tentou invalidar o processo, alegando posse sobre o imóvel, mas teve pedido negado pela Justiça de Pernambuco, que entendeu que ela não tinha “legitimidade para interferir no assunto, uma vez que, na autonomia constitucional pernambucana, caberia ao Estado gerir os imóveis da ilha oceânica, inclusive os tombados existentes”.
Diante da derrota, a União entrou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) na semana passada em que pede, a título liminar e de mérito, a declaração de que tem a titularidade dominial sobre o arquipélago, além de apontar supostas irregularidades e ausência de prestação de contas na administração de Noronha pelo Estado de Pernambuco.
O presidente Jair Bolsonaro não se manifestou diretamente sobre ação, mas o seu interesse no tema já foi manifestado em outras ocasiões. Em crítica à gestão da ilha, o presidente já disse que Noronha se tornou propriedade “de amigos do rei”, e, durante uma live, manifestou claramente o desejo de “federalizar” o território. Além disso, o seu filho, o senador Flávio Bolsonaro (PL), já defendeu a flexibilização de cruzeiros na região do arquipélago, que estão suspensos desde 2013, em nome da preservação da biodiversidade local.

A questão ambiental permeia todos os embates recentes relacionados a Noronha. Em outubro, a ANP tentou licitar uma área para exploração de petróleo no entorno da ilha, mas, após inúmeras críticas de ambientalistas, o bloco não atraiu interessados. Neste ano o governo do Estado, também fortemente atacado, recuou da decisão de liberar navios no arquipélago.
Com cerca de 2 mil moradores, Noronha vem em constante crescimento no fluxo de turistas. No ano passado, apesar das restrições da pandemia, 112 mil pessoas visitaram o local. Trata-se de 47% a mais do que em 2014.
Na seara estritamente jurídica, a discussão que chegou agora às ao STF é relativamente simples. A União se baseia no artigo 20 da Constituição Federal de 1988, que inclui todas as ilhas oceânicas entre os seus bens. O Estado de Pernambuco, por sua vez, defende que deve prevalecer o artigo 15 do ADCT (Atos das Disposições Constitucionais Transitórias), que diz que “fica extinto o território nacional de Fernando de Noronha, sendo sua área reincorporada ao território de Pernambuco” (ver reportagem Ligação com Estado começa no período colonial). “Um dispositivo específico se sobrepõe a uma regra geral”, diz o procurador-geral do Estado de Pernambuco, Ernani Médicis.
Em nota encaminhada ao Valor a AGU diz que seu objetivo com a ação é o cumprimento integral de um contrato de cessão assinado em 2002, “cuja regular execução foi questionada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), Controladoria-Geral da União (CGU) e Ministério Público Federal (MPF)”.
Segundo a AGU, a administração estaria irregular na concessão de licenças ambientais, na liberação de áreas destinadas a habitação para hospedagem e no excesso de visitantes. Ainda segundo a União, o Estado estaria obstruindo a atuação dos órgãos federais, como a demarcação de terrenos de marinha pela Secretaria de Patrimônio da União.
Para a União, o Estado teria concordado tacitamente que não tinha domínio sobre Noronha ao assinar o contrato de cessão. O Estado defende que o contrato é nulo por ir de encontro ao dispositivo de 1988 que reintegrou Noronha à Pernambuco. “Não poderia haver cessão de um bem do qual a União não tinha o domínio a posse”, diz Médicis.
A decisão está nas mãos do ministro Ricardo Lewandovski e não tem data para ir a julgamento. O Estado de Pernambuco já encaminhou uma manifestação prévia à corte, apontando “inconstitucionalidade” no pedido da União.

Em clima pré-eleitoral, a discussão ganhou o discurso dos políticos do Estado. Em nota cobrando do governo federal a execução de um projeto de esgotamento sanitário na ilha, o governador Paulo Câmara (PSB), adversário de Bolsonaro, disse que Noronha “é um orgulho do povo pernambucano e vai continuar sendo”.
Em uma saia justa, o ministro do Turismo e pré-candidato ao Senado, Gilson Machado (PSC), aliado de primeira linha de Bolsonaro, foi às redes sociais afirmar que era “mentira” que o presidente queria tirar Noronha dos pernambucanos.
Em vídeo, Machado repetiu fala de Bolsonaro de que Fernando de Noronha se tornou uma “ilha de amigos” e critica as taxas cobradas na ilha para preservação ambiental, que superam R$ 6 mil por pessoa para estadia de 30 dias. A receita do Estado com taxas no ano passado foi de R$ 41 milhões.
Com Valor Econômico.