Análise: O mercado financeiro não chantageia ninguém

A recente alta do dólar e dos juros suscitou acusações ao mercado financeiro de estar chantageando o governo e a sociedade. Contudo, nada está mais longe da realidade. Os eventos recentes são simplesmente o fruto de sua função de dar preço aos riscos percebido pelos agentes econômicos

Há diversos analistas, economistas e políticos, incluindo um ex-ministro da Fazenda, para ficar em apenas um exemplo da alta exposição midiática destas pessoas, que afirmam que o mercado financeiro “chantageia” o governo para que cumpra a sua “agenda”.

De acordo com estes críticos, caso o governo não “obedeça” ao mercado, haveria um conluio para o dólar disparar, os juros subirem e assim forçar o governo a seguir “os desejos” do mercado. Diversas afirmações nesta linha ocorreram após o anúncio do pacote de corte de gastos do governo, no final de novembro, e intensificadas em dezembro com a forte alta do dólar e dos juros que se seguiram.

Apesar de toda a repercussão destas opiniões, elas são totalmente infundadas, nada está mais longe do que realmente ocorre.

Quem é o tal ‘mercado financeiro’?

O mercado financeiro, ou simplesmente “o mercado”, é formado por um conjunto diverso e amplo de pessoas físicas, fundos, empresas e instituições que possuem em comum uma participação no processo de circulação dos recursos financeiros na economia.

Trata-se de um ecossistema complexo em que pequenos investidores (as “sardinhas”) convivem com gestores de fundos e banqueiros (os “tubarões”), além de diversos outros atores como analistas, assessores de investimentos, distribuidores, regulados e fiscalizados por diversas entidades como o Banco Central e a CVM.

Na verdade, quase todas as pessoas adultas participam do mercado financeiro ao possuírem contas bancárias, cartões de crédito ou solicitar financiamentos.

Para complicar ainda mais o cenário, esses participantes podem ser brasileiros ou estrangeiros que investem no Brasil, tornando a dinâmica das relações ainda mais complexa.

O comportamento do mercado financeiro é a soma dos atos de todas essas pessoas, fundos, empresas e entidades.

Teoria da conspiração

Ainda que alguns “tubarões” movimentem altos volumes financeiros em termos absolutos, esses recursos são apenas uma pequena porcentagem do total, e assim eles são incapazes de controlar o mercado dado esse grande conjunto de agentes e a complexidade de suas inter-relações.

A teoria da conspiração de meia dúzia de grandes banqueiros chantageando o governo e o país não se sustenta, apesar de seu apelo midiático e presença no imaginário popular.

O comportamento dos tubarões e das sardinhas é parecido

Os objetivos dos participantes do mercado, sejam tubarões ou sardinhas, são basicamente proteção ao seu patrimônio e busca por lucro financeiro.

Assim o seu pensamento e forma de agir, na média, tende a ser parecidos. Em geral, não gostam de riscos e buscam retornos para seus investimentos. A grande função do mercado é justamente dar preço para esses riscos e retornos.

Quando a percepção de risco aumenta, os investidores, pequenos ou grandes, buscam proteger seu patrimônio e compram mais dólares, o que faz esse ativo se valorizar.

Ao mesmo tempo exigem mais retorno (juros mais altos) para emprestar recursos para o governo, bancos ou empresas. Logo dólar e juros sobem, simples assim.

O que aconteceu em novembro e dezembro

Uma conjunção de fatores externos e internos aumentaram a percepção de risco e levaram a esse aumento do dólar e dos juros.

A eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos aumentou a percepção de risco externo. As suas promessas de campanha, como maior protecionismo com aumento de tarifas de importação, corte de impostos e combate rígido à imigração ilegal são interpretadas como inflacionárias, o que elevou a expectativa de juros futuros estadunidenses. Maiores juros atraem dólares, desvalorizando a moeda brasileira e aumentando também os juros no Brasil.

Em outras palavras o mercado fazendo a sua função de atribuir preços dada a percepção de maior risco nos Estados Unidos.

E no Brasil?

No Brasil, ao mesmo tempo, aprofundou-se a percepção (certa ou errada, o tempo dirá) de que o governo não está seriamente comprometido com o ajuste das contas públicas.

Nesta lógica, o déficit público excessivo levaria a um rápido aumento da dívida pública em porcentagem do PIB, o que agravaria ainda mais o déficit em um ciclo vicioso.

Esse processo leva ao questionamento da sustentabilidade da dívida em médio e longo prazo. Uma dívida que cresce rapidamente em um ciclo vicioso, em algum momento se tornará impagável, ficando maior que a própria arrecadação do governo.

Nesta situação limite o governo teria apenas duas opções, ambas péssimas: um calote literal na dívida (estilo Plano Collor) ou a impressão de dinheiro, com a consequente volta da inflação crônica e incontrolável, no estilo da década de 1980.

Arcabouço fiscal

O governo se comprometeu com um arcabouço fiscal, ou seja, um conjunto de regras para limitar o déficit público e atingir superávit ao longo do tempo para evitar o crescimento excessivo da dívida pública. Contudo, recentemente, o próprio governo reconheceu que não estava conseguindo cumprir o seu arcabouço.

Para corrigir isso, anunciou um pacote de cortes de gastos, mas considerado tímido e de execução complicada. Para piorar, ainda fez uma proposta de isenção de imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil por mês, ou seja, uma renúncia fiscal, com dúvidas sobre como seria efetivamente a compensação destes recursos tributando os mais ricos.

A percepção do mercado assim foi de um cenário de mais dívida pública, portanto maior risco dela sair do controle. Novamente, dólar e juros mais altos para proteção, tanto para sardinhas quanto para tubarões.

O mercado não é contra a justiça social

Tributar os ricos e isentar os mais pobres de imposto de renda é absolutamente correto do ponto de vista econômico, além de socialmente muito justo. Para os teóricos da chantagem, o mercado, composto apenas por ricos, quer evitar isso a todo o custo e pressiona o dólar e juros para impedir que aconteça.

Não é isso que ocorre. Não há conspiração ou chantagem pelo simples fato que a multiplicidade e diversidade de participantes. Bem como a complexidade de suas relações inviabiliza qualquer conluio para tal.

O problema no caso foi, novamente, a percepção de risco. A renúncia fiscal com a isenção dos mais pobres é líquida e certa. Contudo, a compensação de arrecadação com mais tributação dos ricos não é garantida. O governo não explicou em detalhes como seria feita e executada na prática. Ademais há o risco do Legislativo não aprovar ou aprovar apenas parcialmente a compensação.

Resumindo: renúncia fiscal garantida, compensação incerta, mais risco da dívida aumentar, dólar e juros mais altos. Não é incômodo do mercado com a justiça social, é um problema com a aritmética básica mesmo.  

O que o investidor deve fazer neste momento

Neste contexto de volatilidade tão alta, aumento da percepção de risco, dólar e juros em ascensão, as recomendações continuam sendo as mesmas de sempre.

O investidor deve  possuir investimentos adequados ao seu perfil de risco. Estar sempre bem diversificado entre classes de ativos, moedas e geografias.

Veja o dólar o bitcoin no momento, por exemplo. E, claro, ter um horizonte de longo prazo.

Esses cuidados vão permitir que você supere a turbulência sem grandes perdas e consiga construir o seu patrimônio.

Isto é inteligência financeira.

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