Da obscuridade à Casa Branca: como um blogueiro marginal se tornou um ideólogo que quer refundar a política americana sob Trump

Há quase duas décadas, Curtis Yarvin já argumentava que ‘a democracia é um experimento fracassado do século XX’

A recente entrevista de Curtis Yarvin ao The New York Times em janeiro de 2025 pode ter surpreendido os leitores do maior jornal do mundo tanto pela escolha do personagem quanto pelo título que ela recebeu.

“Curtis Yarvin diz que a democracia já era. Conservadores poderosos estão ouvindo-o”.

E por conservadores poderosos, é importante notar, eles são JD Vance, o atual vice-presidente dos Estados Unidos, o megainvestidor de venture capital Marc Anderssen e o onipresente Peter Thiel, um dos mais bem-sucedidos empreendedores do Vale do Silício.

O que é possível perceber, no entanto, é que a entrevista revela uma consistência considerável com as ideias que ele apresentou em seu “Manifesto Formalista”, de 2007.

Isso quando era um blogueiro virtualmente desconhecido que assinava seus textos como Mencius Moldbug em um espaço chamado de Unqualified Reservations.

Descrença na democracia representativa é um traço constante

Há quase duas décadas, Yarvin já argumentava, dessa maneira, que “a democracia é um experimento fracassado do século XX”.

Uma frase que ele praticamente repetiu na entrevista ao NYT: “a democracia já era”.

Em ambos os momentos, separados por 18 anos, sua visão central permanece inalterada: a necessidade de substituir a democracia representativa por um sistema de governança corporativa, onde o chefe do executivo atuaria com poderes análogos aos de um CEO.

Em 2007, Yarvin propôs, no entanto, que o Estado deveria ser administrado como uma corporação. Isso prevê acionistas substituindo eleitores e métricas claras de desempenho no lugar de promessas eleitorais vagas.

Dessa maneira, na entrevista de 2025, ele refina essa ideia apresentando o conceito ‘America Inc.’.

O presidente-CEO teria, assim, autonomia quase total para implementar políticas sem as “amarras” do processo democrático.

A continuidade entre esses dois momentos, no entanto, é ainda mais evidente em sua crítica ao que ele chama de “Estado Administrativo”.

Um termo que aparece em ambos os textos para descrever a burocracia governamental como fundamentalmente incompatível com eficiência e inovação.

Quem é Curtis Yarvin e de onde ele veio

Yarvin, nascido em 1973, tem uma trajetória que mistura tecnologia e teoria política radical.

Formado em ciência da computação pela Universidade de Brown, iniciou sua carreira como engenheiro de software em São Francisco durante a primeira bolha da Internet, no início dos anos 2000.

Dessa maneira, fundou várias startups de tecnologia, incluindo a Urbit, uma plataforma de computação descentralizada que atraiu investimentos significativos do Vale do Silício.

Sua formação técnica e experiência no mundo das startups, no entanto, moldaram significativamente sua visão política, levando-o a ver o governo como um “sistema operacional” desatualizado que precisa ser completamente reescrito.

Surge Mencius Moldbug

Sob o pseudônimo Mencius Moldbug, Yarvin começou seu blog Unqualified Reservations em 2007, onde desenvolveu suas teorias políticas do ‘Dark Enlightenment’ (que pode ser traduzido livremente como ‘Iluminismo das Trevas’, em oposição ao Iluminismo Clássico).

Sua formação como engenheiro de software é facilmente notável em sua abordagem da política: ele frequentemente usa analogias computacionais e conceitos de design de sistemas para criticar as instituições democráticas.

Sua experiência como fundador de startups também influencia, assim, sua visão de que o governo deveria funcionar mais como uma empresa de tecnologia, com estruturas de decisão claras e hierárquicas.

O ‘Formalismo’ começa a ganhar tração

Curtis Yarvin transformou sua crítica radical à democracia em um arcabouço ideológico que ele chamou de ‘Formalismo’, uma teoria política, que apesar de estar fora do circuito de produção intelectual de ciência política, começa a ganhar tração em uma parte específica das elites americanas: a que está no Vale do Silício.

No entanto, sua tese central – de que a democracia é um sistema inerentemente falho e disfuncional – ganha terreno por uma argumentação provocativa.

Que é: as instituições democráticas são lentas, ineficientes e incapazes de tomar decisões rápidas em um mundo de mudanças aceleradas.

Para Yarvin, os eleitores americanos podem abraçar um modelo autoritário não por uma virada totalitária, mas por uma promessa pragmática de eficiência.

A solução do ‘CEO-Presidente’ ou o ‘monarca tecnológico’

Sua narrativa seduz especialmente elites empresariais e tecnológicas frustradas com burocracias governamentais, apresentando o ‘CEO-presidente’ como uma solução gerencial para problemas estruturais do país.

Assim, a atratividade do modelo proposto reside na promessa de substituir debates políticos intermináveis por decisões rápidas e cirúrgicas.

Yarvin argumenta, no entanto, que os cidadãos valorizam resultados sobre processos.

E um líder com poderes próximos a um monarca tecnológico poderia entregar soluções onde a democracia tradicional falha sistematicamente.

E JD Vance entra na mistura

J.D. Vance emergiu como um dos principais tradutores e amplificadores das ideias de Yarvin para o mainstream conservador.

Sua própria trajetória – de uma infância pobre em Ohio à formação em Yale Law School, sucesso como autor e posteriormente venture capitalist – o posicionou de maneira interessante para ser a ponte entre duas Américas que pareciam inacessíveis uma à outra.

Após sua eleição para o Senado em 2022, Vance intensificou sua articulação das ideias de Yarvin em círculos políticos de Washington.

Em seu gabinete no Senado, estabeleceu um grupo de trabalho informal focado em “reforma administrativa”.

O colegiado frequentemente discute propostas alinhadas com as teorias de Yarvin sobre o ‘Estado Administrativo’.

A chegada ao mainstream em Washington

Em 2022, Vance organizou uma série de jantares privados em Washington onde Yarvin apresentou suas ideias para um seleto grupo de senadores republicanos e assessores parlamentares do Congresso americano.

Nesses encontros, documentados pelo The Washington Post, Yarvin refinou sua mensagem para uma audiência política profissional.

Ele colocou o foco em aspectos práticos sobre como implementar mudanças estruturais no executivo federal.

Vance também tem sido essencial em conectar Yarvin com think tanks conservadores influentes.

Em especial o Claremont Institute e a Heritage Foundation, onde suas ideias têm encontrado terreno fértil para desenvolvimento e disseminação.

O abraço do círculo trumpista

No manifesto formalista original de 2007, Yarvin já defendia conceitos que hoje ressoam no círculo trumpista.

A transformação de suas ideias de nicho para mainstream foi catalisada por figuras como Peter Thiel e Marc Andreessen, empresários do Vale do Silício que viram nas teorias de Yarvin uma alternativa intelectual ao modelo democrático tradicional.

Vance, que trabalhou anteriormente para Thiel e recebeu significativo apoio financeiro dele durante sua campanha ao Senado, serve como uma ponte crucial entre o mundo das ideias de Yarvin e a política institucional republicana.

A questão crucial: como sair da teoria de Yarvin para Trump?

A estratégia de implementação passaria por uma reengenharia gradual: uso extensivo de ordens executivas, reclassificação de funcionários públicos, nomeações estratégicas em posições-chave e reinterpretação criativa de prerrogativas constitucionais.

Vance, em seu papel como vice-presidente, tem sido instrumental em articular versões mais palatáveis dessas propostas. Ele as apresenta como reformas administrativas necessárias para “destravar” o potencial americano.

Em 2024, ele introduziu o Government Efficiency Act, uma legislação que, embora aparentemente focada em reforma administrativa, incorporava vários elementos-chave das teorias de Yarvin sobre concentração de poder executivo.

O projeto de lei, ainda que não tenha avançado, serviu como importante teste para medir o apoio às ideias mais radicais de reforma governamental dentro do Partido Republicano.

O caminho para a execução é tudo, menos trivial

As dificuldades de implementação deste projeto radical das políticas inspiradas por Yarvin seriam enormes. O sistema político americano possui camadas de resistência institucional profundamente enraizadas que funcionariam como barreiras naturais às transformações autoritárias,

Que são os conhecidos ‘checks and balances’, expressão que pode ser traduzida livremente como ‘freios e contrapesos’.

Os governadores estaduais, especialmente em estados democratas, poderiam, dessa maneira, acionar uma grande quantidade de batalhas judiciais para contestar mudanças que julgam ser inconstitucionais.

Tribunais estaduais e federais, mesmo com maioria conservadora, manteriam capacidade de frear avanços que representassem ruptura dos princípios constitucionais.

Ligação com grupos acusados de discurso de ódio e discriminação

As polêmicas em torno de Yarvin ganham profundidade quando se analisa sua trajetória no movimento do ‘Iluminismo das Trevas’. Suas conexões com a alt-right foram marcadas por declarações que navegavam deliberadamente em zonas ideológicas cinzentas.

Para isso, usou sofisticação intelectual para apresentar conceitos próximos a teorias de supremacia racial sob linguagem acadêmica.

No movimento ‘Iluminismo das Trevas’, Yarvin desenvolveu narrativas que, embora elaboradas teoricamente, continham elementos de supremacia branca disfarçados de teoria política.

Sua crítica sistemática ao multiculturalismo e defesa de hierarquias sociais naturalizadas o aproximaram de grupos neonazistas, ainda que ele sempre negasse alinhamentos diretos.

Necessidade de conexão com a política real em Washington

A possibilidade de implementação dependerá não apenas do controle institucional, mas da capacidade de navegação política, construção de consensos e superação de resistências profundamente enraizadas no sistema político americano.

A capacidade de Yarvin de transformar ideias marginais em propostas aparentemente técnicas e pragmáticas, no entanto, representa seu maior trunfo intelectual.

Mas também seu maior perigo potencial para as instituições democráticas americanas.

Com aliados como Vance na vice-presidência, suas ideias encontram cada vez mais eco nos corredores do poder em Washington. E pode se transformar no que antes era uma teoria marginal em um possível plano de ação para uma reforma radical do sistema político americano.

Leia a seguir